Memórias, sonhos e reflexões de um quarto de hotel

Por ambientação um sobrado de 1914 na Rua da Glória, antes casa de família, antes pensão, antes refúgio, quase ruína, hoje hotel. Por protagonista e voz o quarto 201. Por palavras suas as que já ecoaram nos seus mais de 90 anos imobilidade, e as frases que aderiram aos tijolos.

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vicsaramago@gmail.com / saramago@stanford.edu

Wednesday, April 30, 2008

Outros ares

Às vezes entra vento em mim, às vezes sopro palavras de outros ares. É o que acontece agora, bem vejo, e já não sei se é de outro quarto, outro prédio, outro blog, outro mundo. Sei que hoje tenho intervenção de fora, e o vento de hoje atende pelo nome de Ronaldo Brito Roque, um amigo das letras com um romance no prelo - o nome ainda não me sopraram, mas a editora é a Confraria do Vento. Pois hoje a canja é de Ronaldo. Aí vai ela:


Hoje eles não ficam muito tempo dentro de mim. Chegam de noitinha ou de madrugada, tiram as roupas, tomam seus banhos demorados, às vezes secam o cabelo, às vezes apenas caem na cama e dormem um sono mudo e sem sonhos. No dia seguinte acordam com um telefonema da portaria e saem apressados, alguns ansiosos para voltar a suas casas e famílias, outros lamentando não poderem prolongar esses raros momentos de solidão, quando se vêem livres das reclamações da mulher, da televisão alta e das discussões intermináveis dos jovens.
Se eu não tivesse pertencido a uma casa, se eu mesmo não tivesse acompanhado a queda dos primeiros dentes, as primeira rugas, o escassear dos cabelos, talvez acreditasse que a diferença de idade fosse mera diferença física, como a cor da pele, a altura e o sexo. Os homens teriam dezoito ou sessenta anos como têm nariz grande ou pequeno, cabelos loiros e escorridos ou castanhos e encaracolados. Seus rostos enrugados ou lisos, suas orelhas enormes ou pequeninas seriam mais um detalhe biológico que eles deveriam a um dos pais ou a algum ancestral mais antigo. Mas eu pertenci a uma casa, eu vi crianças perderem seus dentes e garotas ganharem seios e ancas redondas e felizes. Vi homens passando as mãos nos cabelos e reclamando de sua queda rápida e impiedosa. Vi mulheres chocadas com a mudança de seus corpos depois da primeira gravidez. Assim aprendi que alguns traços se devem à ação do tempo e que os homens todos primeiro são crianças lindas e vivas e só depois vão se encurvando e perdendo a dignidade. É certamente por isso que nunca os invejei, esses macacos pelados e falantes. Eles se agitam como moscas, olham para seus relógios e reclamam do tempo e da vida, sempre procurando alguém, às vezes até um deus, para culpar por sua paixão e seu tormento inútil. Cada vez que um deles blasfema dentro de mim, eu me regozijo em ser tijolos e cimento, indiferente às oscilações do câmbio, ao preço dos aluguéis e aos humores femininos. É delicioso durar mais que uma vida humana e ver o quanto ela tem de decadente e estéril. É gratificante permanecer em silêncio enquanto os homens agitam suas vozes em torno das coisas inconsistentes, seus governos e mandos, sua natureza pútrida, seus deuses plurais e conflitantes.
Contudo houve um breve tempo em que mirei com certa compaixão essas feras falantes. Não digo que os invejei, não digo — deus me livre! — que cheguei ao ponto de querer ser um deles. Mas não nego que senti certa alegria em ser parte do seu mundo, em abrigar olhos que transbordavam ternura e corpos que exalavam o suor feliz e confiante do amor — é claro que estou falando de um casal. Eles vinham quase todo fim de semana, intuí que moravam aqui perto e precisavam de espaço para a recém descoberta intimidade. Ela se despia de pressa e um pouco nervosa, senti que ainda não sabia como realizar aquele ato com a naturalidade e a elegância que cabem às autênticas princesas. Mas o rapaz não se apressava em contemplar e tocar seu corpo. Ele já sabia da sacralidade do toque, do cheiro, do sabor marinho e acanelado que o amor infunde no corpo da mulher. Aos poucos ela se entregava confiante, num êxtase profundo e sereno como deve ser a entrega dos pássaros à sabedoria do vento. Depois eles permaneciam abraçados, exaustos, e seus corpos se encaixavam com a precisão e delicadeza das partes que querem se tornar um todo. A aura que pairava dentro e acima dos dois, serena e viva como uma oração, ficava ainda algum tempo no quarto depois que eles saíam. O perfume dela impregnava as paredes, brindava os próximos hóspedes e também a mim mesmo, que sinto os perfumes pelo tato, como quem sente a carícia suave do vento.
Às vezes ela começava a se vestir, e ele a puxava de volta para a cama, implorando um pouco mais do silêncio quente e pulsante da sua nudez. E esse segundo encontro era mais sereno, como a maré da minguante, e os dois se olhavam nos olhos e sussuravam as palavras que separavam definitivamente aquele evento do resto do mundo. Eles não tinham como saber que eu os percebia — sou muito raro entre os meus — e se acreditavam sem nenhuma testemunha, a não ser os seus próprios olhos e ouvidos; suas mãos e bocas; e as lembranças que ecoariam depois, nos seus sonhos, nos seus minutos de mudez, no banho ou num canto qualquer sem telefone. Nesses momentos eu parava de perceber o tempo, mesmo o meu, que se arrasta com muito mais vagar, e acreditava vislumbrar um prenúncio confiável disso que vocês chamam de eternidade. Eu sabia que aquele momento existiria novamente, se não no meu interior, pelo menos dentro dos corpos que arfavam e se consumiam ali mais uma vez, dentro de algum mistério que era mais consistente e durável que eles mesmos.
E talvez tenha sido essa a minha fraqueza: acreditar que a eternidade coubesse em algo tão menor e mais breve que ela. Nas semanas seguintes, eu perceberia uma eternidade inteiramente fiel a si mesma, e completamente indiferente ao meu amor recém descoberto pelos homens. Ele entrou sozinho, ficou sentado na cama, fumando, depois se despiu e se esfregou no lençol, como se procurasse alguma coisa entre seu corpo e o espaço vazio que pairava acima da cama. No espelho do banheiro, ele roçava a própria pele, buscando por algo de que a pele se lembrava, mas não podia reproduzir. Deitado na cama, ele fazia perguntas silenciosas ao teto. Não chorava como ela, não batia a porta quando saía, não parecia desesperado, apenas triste. A garota é que parecia pior, com seu choro soluçado e suas blasfêmias. Ela via suas lágrimas e muita culpa no espelho. Não chegava a se despir, e também não fumava, o que talvez fosse pior, pois seu corpo desocupado relembrava com mais precisão o toque dele. E os dois cultivaram por algum tempo esse sofrimento inútil e programado. Vinham sozinhos ao quarto, tentavam inutilmente reviver um segundo da alegria sincera, da ternura sublime que viveram ali dentro. Conseguiam apenas a indiferença muda e altiva das minhas paredes — mas acreditem: isso era à minha revelia. Se houve um tempo em que quis adentrar o mundo dos humanos, se alguma vez eu desejei vibrar o ar com a potência e a clareza de uma voz, foi nesses dias em que eles vinham sozinhos buscar o conforto inútil de uma explicação. É claro que eu não explicaria nada, apenas diria a verdade, que já estava no mesmo espaço em que os dois, precisando apenas encontrar o mesmo tempo. Se ele soubesse que ela também voltava a mim e chorava a ausência do seu riso... Se ela soubesse que ele enfumaçava minhas paredes maldizendo a falta do seu perfume... Ah, se eu tivesse uma voz, se eu pudesse revelar a urgência dos pensamentos que ecoavam mudos nessas paredes, eu apenas mandaria que cessassem aquela dor mesquinha e encontrassem para além da fugacidade do rancor a longevidade segura do perdão. Eu adivinhava as acusações amargas que eles não confessavam às minhas paredes. Ele talvez tivesse freqüentado outros quartos, com amores menos belos e mais baratos. Ela, quem sabe se encantara um momento por algum rapaz mais altivo e rico, que lhe acenara com a possibilidade de hotéis mais caros e próximos do mar. Depois tudo era arrependimento. Os quartos mais baratos, afinal, não valiam o mísero dinheiro que custavam. E o rapaz altivo podia mesmo pagar hotéis melhores, mas não despertava nela a alegria terna e segura do seu amor plebeu. Mas os dois não ousaram falar sobre seu arrependimento, e eu, que talvez pudesse uni-los com a denúncia, permaneci trancado no meu silêncio impotente, esse mesmo silêncio que fora meu orgulho e era agora meu limite e meu destino.
E hoje os homens continuam a me habitar brevemente e a falar em seus celulares e a se agitar como moscas em torno das coisas que apodrecem. Confirmo que não os invejo, mas já não encontro no meu silêncio a paz convicta que antes encontrava. Miro a eternidade com certa desconfiança. Sei que vislumbrei algo maior e mais intenso que ela, embora mais breve, e desejei por um instante algo que ela não me concedia. Esse momento de revolta bastou para me jogar dentro do tempo, e agora conheço o desgosto inútil dos insatisfeitos. Os dois já não vêm mais aqui. Não duvido que tenham cedido facilmente ao esquecimento, essa pequena morte antes da morte definitiva. E eu, que conheci o tempo e seu limite, só me resta agora esperar também por algum tipo de morte, algo que me livre dos limites do tempo que, graças ao que havia de eterno naqueles dois, eu pude descobrir.


Ronaldo Brito Roque 23/Abr/2008 - Dia de São Jorge

Tuesday, April 15, 2008

Coisas grandes

Como o movimento por aqui está muito pouco e quase nada tenho tido a fazer, ando desencavando uns ditos que me ficaram reverberando suavemente por décadas e décadas. Outro dia, por exemplo, lembrei duma grande frase:

“Um grande homem sem religião não é nada mais que uma grande fera sem alma.”*

Se fosse humano até que me dava uma vontade de arranjar religião, só para bater palmas incondicionais.

Sendo quarto, no entanto, só me resta emendar assim:

“Um grande homem sem religião não é nada mais que um grande quarto de hotel sem hóspedes.”

E aqui eu só posso ficar feliz de pertencer a um casarão do início do século, e de serem os casarões do início do século tão largos e espaçosos. Ao menos na generosidade dos meus metros quadrados, não fico devendo nada nem ao homem nem à fera.

* Daniel Defoe

Tuesday, April 08, 2008

Um ano não faz mal, um par de séculos tampouco

Estive algum tempo ausente, é verdade. Mais de um ano, para ser bem exato. De 16 de fevereiro a 8 de abril bem que me pareceria um bom tempo, e a todos nós, que vivemos em escala humana. Mas eu, ora bolas, eu não sou humano. Em que pese ser eu produto dos homens, e ainda pelas mesmas mãos dos mesmos homens hei de ruir – vocês ainda verão – mas diga-se tudo isso; eu permaneço cimento. Cimento dura mais que peles e ossos, graças a Deus e aos tijolos que nos sustentam. Por isso, um ano para quem já faz quase um século é coisa pouca, e para mim não durou mais do que o vazio de um meio de semana sem hóspedes.
Ah, os humanos. São engraçados. Estive pensando neles nos últimos tempos – como se tivesse ralmente algo mais em que pensar. Os humanos dão caras a tudo: um ano a eles, uma década que seja – e vamos medir aqui em décadas –, tudo nas suas características peculiares, como se humanos fossem os anos que passam. Como se as décadas se fantasiassem com o mesmo apuro dos nossos carnavalescos.
Andei pensando nisso, com efeito. Andei pensando se ainda resisto a mais um século, se ainda vejo os próximos anos 20, 30, 50, 80 e por aí vai. Se serão as décadas do século XXI exatamente as mesmas com que teimamos em rotular as do XX. Porque seria gozado se os próximos anos 40, sem guerras e nazismos, fossem de uma paz e uma tolerância aterradoras. Ou que os 60, sem os desbundes e protestos que andaram chegando por aqui, conhecessem, ao contrário, os jovens mais fresquinhos e conservadores de que se teve notícia. Ou que os 90 e 00 que por aí virão não tivessem nada de nada de tecnologias e internets e celulares, que a informação não se transmitisse de jeito nenhum, e qualquer hi-tech soasse tão paradoxal quanto a escravidão na democracia grega. Porque essas coisas acontecem.
Como se lêssemos um livro de história ao contrário, assim talvez o leiam as crianças do século XXII. Se é que haverá necessidade de ler alguma coisa, se é que já não teremos laptops instalados no cérebro.
E nisso passam-se os anos. Logo chegaremos ao fim da década de 2010, e em lugar da Revolução Socialista, que haverá? A Belle Époque, se é que já veio, eu ao menos não senti. É bom já ir pensando nessas questões: não falta muito a que o século próximo as engula. Já eu, se eu me mantenho de pé até lá, ainda acharei divertido de comparar. Dois séculos de vida para um quarto não vão nada mal: é o suficiente para demolir qualquer certeza.
Mas não reparem, é tudo coisa de quem tem tempo demais e miolos de menos. É coisa de quem vê passar diariamente por si os seres humanos mais variados em seus caprichos mais íntimos, carnavalescos como passam os meses e os anos nos nossos calendários.
Ao menos, viva o quanto viver, veja o que há de supreendente para ser visto, ao menos uma certeza me resta, e quero ser um mico de circo se não será verdade: que os anos 80 jamais saberão se vestir com bom gosto.