Memórias, sonhos e reflexões de um quarto de hotel

Por ambientação um sobrado de 1914 na Rua da Glória, antes casa de família, antes pensão, antes refúgio, quase ruína, hoje hotel. Por protagonista e voz o quarto 201. Por palavras suas as que já ecoaram nos seus mais de 90 anos imobilidade, e as frases que aderiram aos tijolos.

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vicsaramago@gmail.com / saramago@stanford.edu

Monday, November 17, 2008

Felicidade

Digamos que houvesse um casal deitado na cama. Quem eram não importa – não importa nem se eram de fato um par, ou se três, se quatro, cinco. Digamos que houvesse cinco pessoas deitadas na minha cama às oito da manhã: eram um casal de cinco, e o casal dormia às oito da manhã, aos primeiros raios de sol. O casal era um grande emaranhado de braços e pernas em meio às pontas dos lençóis. Pois foi isso que eu vi, exatamente – é o que há para ser visto no mundo, suspeito.

O casal se comportava como quem se comporta após ter sono até cair. O casal dormia dum sono profundo e pesado – é o que há para ser feito no mundo, suspeito. Do suspiros de uma pessoa ao ronco de outra, dos olhos semi-abertos de um terceiro ao sorriso semi-fechado de um quarto, e o quinto corpo mexia muito levemente os dedos das mãos quando o primeiro que suspirava suspirava perto do seu rosto. Eram cinco ou seis, pois havia também um que de quando em quando acordava aos pequenos sustos para adormecer em seguida.

Por cima da imobilidade toda dos poucos gestos e respirações, pelos corpos cobertos de lençóis e também de outros corpos e cabelos e suores, como que coroando a obra toda acumulada sobre os colchões e os travesseiros, incidiam de leve os raios de sol pelas frestas das cortinas. Os pelos do braço direito de um rapaz brilhavam, os olhos de uma mulher quase que abriam incomodados pela claridade. Pois eram já quase oito da manhã e ainda todos dormiam como se não houvesse nada mais que fazer nas manhãs, como se fosse isto o mundo.

Uma mosca voava aos bocados por cima de um ombro, uma fileira de formigas se mobilizava ao redor de umas bolotas de açúcar caídas pelo chão junto aos pés da cama. Ninguém acordava. As poeiras da manhã brilhavam aos raios de sol, era muita a poeira.

E eu me cansava por serem todos quase tão imóveis quanto eu, por agirem como se fora o mundo só isto o que eu fazia: nada. Por o sono avançar manhã adentro, é às vezes tão cansativa a imobilidade do sono, como a minha. Eu me entediava, por isso, e desejava bocejar e suspirar e roncar. Eu desejava ter dedos para mover de leve as suas pontas quando me batessem os raios de sol nas paredes, e desejava ter o calor do sol que os fazia a todos ainda suarem de leve apesar de tão imóveis, apesar do tanto de calor que faz um emaranhado de gente muito junta.

Assim enquanto eu pensava uma pessoa acordou suave, pestanejou e delicada retirou uma a uma as mãos e as pernas e o queixo – uma pessoa soterrada de outras é sempre e tanto uma fonte de calor –, a pessoa suava e parecia feliz, os raios de sol agora pelos contornos das coxas e das pernas esticadas. A pessoa vestia uma calça e uma camisa, e uns chinelos e a bolsa ou carteira estava sobre uma poltrona, a pessoa abria a porta e saía das minhas paredes delicada como jamais entrara, e eu como que me comovia de ser às vezes tão doce alguém simplesmente se levantar para se vestir e sair em silêncio, como alguém se desembaraçar do emaranhado que era eu mesmo.

Pois quando a pessoa se foi eu senti, e se pudesse suspirava, como suspiraram dois dos que restavam sobre a cama, como se moveram os outros dois ou três de leve, o emaranhado se reacomodando para perder dois braços e duas pernas e um queixo e mais tanta coisa. O emaranhado precisava aprender a viver sendo menos emaranhado, e eu os compreendia tão bem, como compreendia que uma mão puxasse uma ponta de lençol para cima de si, ou que um braço se abraçasse a uma outra barriga ou a um ombro. É que ninguém acordara, ninguém de fato se movera, e o sol continuava ali como as moscas, as formigas e as minhas paredes, mas em meio a isso tudo o corpo a menos fizera o conjunto menos quente, e esse pouco de calor retirado, todos nós inconscientes lhe sentimos a falta, e nos apertamos em nós mesmos.

8 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Nunca pensei que diria isso, mas tenho saudade das moscas e formigas. São os maiores sintomas da sujeira puril. Quanto mais o mundo perde a inocência, mais se torna o reino das baratas, ícones da sujeira doentia, casca-grossa.

Esse quarto tem uma sujeira naïf. :)

11/21/2008 9:07 AM  
Anonymous Anonymous said...

Damn. PuEril.

11/21/2008 9:07 AM  
Anonymous Anonymous said...

Ah, "perder dois braços e duas pernas e um queixo e mais tanto coisa". Lovely.

11/21/2008 9:10 AM  
Blogger Victoria Saramago said...

hahaha vou corrigir!

11/21/2008 9:41 AM  
Anonymous Anonymous said...

Ai, droga. Achei que era de propósito. :P O que eu vi que era erro foi o "Do suspiros de uma pessoa"

11/21/2008 6:42 PM  
Anonymous Anonymous said...

há sete dias, o quarto de hotel estava com as portas abertas. hj volto e, diante da porta, toc toc toc!

11/25/2008 4:32 AM  
Blogger Bruna Mitrano said...

Que felicidade, que calor!
Lindo o final.
Teus textos são tão bons, Vic!

12/21/2008 8:12 AM  
Blogger V.H. de A. Barbosa said...

Que bela iniciativa ousada esse blog! Gostei da temática e me surpreendi ao notar como algo estático é capaz de tamanha dinamicidade em suas contemplações.

O estranho é que nem sei explicar como cheguei aqui: se pela Bruna, se pelo Mauro, se pela dica do Mauro de visitar a editora Multifoco. Talvez esse seja um lugar em que acabamos chegando perdidos e sendo acolhidos pelo quarto.

Parabéns, abraços!

12/21/2008 8:23 PM  

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