Memórias, sonhos e reflexões de um quarto de hotel

Por ambientação um sobrado de 1914 na Rua da Glória, antes casa de família, antes pensão, antes refúgio, quase ruína, hoje hotel. Por protagonista e voz o quarto 201. Por palavras suas as que já ecoaram nos seus mais de 90 anos imobilidade, e as frases que aderiram aos tijolos.

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vicsaramago@gmail.com / saramago@stanford.edu

Monday, July 24, 2006

O dia seguinte

Se tem alguma coisa que me desagrada imensamente é muita bagunça por nada.

Como um casal que eu fui ontem à noite. O tipo de casal mais banal, e talvez não por acaso, o que mais adora me ser. Como essas pessoas que trabalham no centro da cidade e chegam aqui no início da noite, as roupas cheirando à fumaça do asfalto e os bafos de café com coxinha, os olhos afundados nas olheiras e essa sensação curiosa d’alguma possibilidade de ainda assim ser sexy. Como as centenas de secretárias de calcinhas gastas que já me tomaram por habitação aos seus executivos, como os executivos rechonchudos que, como este que aqui ontem à noite me foi, teimam em trazer suas secretárias aos quartos desses hoteizinhos de segunda, como eu, arrumadinhos mas tão nada demais, como eu.

Até aí eu me divirto. Que venham aqui me tomar para as suas fantasias rasas e banais como todos eles, sempre as mesmas – e como é possível passar mais de 90 anos acompanhando fantasias que praticamente não mudam! – e que me aproveitem, sendo eu isso mesmo, o lugar onde possam suspirar num arroto: aqui temos o direito de ser livres, e que sorriam debilmente um para o outro, que passem as secretárias as mãos pelas tinturas dos cabelos, acreditando-se tão sensuais nas suas unhas pintadas, e os executivos tirando-lhes as calcinhas pensem que ainda não era bem isso, que talvez se pudesse achar algo melhor, mas se confortem afinal, porque são essas as secretárias que lhe cabem.

Até aí eu não reclamo. Eu me divirto. Eu me divirto com os pudores do executivo que me foi ontem, por exemplo. A secretária se desmanchando nos strip-teases, sorridente nos seus peitos caídos, chupando e lambendo o cara até encher os meus lençóis de saliva, como se já não bastasse o próprio suor do sujeito, as banhas se esparramando pela cama e as suas tentativas tão frágeis de colocar a camisinha sem pôr tudo a perder, e o sorriso da secretária depois de algum tempo mais de nervoso do que de qualquer tesão – às vezes não dá mesmo para entender essas pessoas que insistem – e o ridículo da coisa toda que só mesmo um quarto como eu para legitimar.

Mas até aí sem problemas: eu me divirto. Desde que não criem mais desordem do que demandam os seus prazeres, desde que a bagunça depois não seja demasiada para a imaginação pouca e os fracassos. Porque francamente, para um casal ruim de cama como esse que me foi ontem à noite, francamente, eu não precisava ficar no estado em que me deixaram. Eu não precisava das cinco ou seis camisinhas espalhadas pelos cantos, desperdiçadas nas inúteis tentativas do meu hóspede. Eu não precisava depois do seu gozo me manchando os tapetes – porque no final, já tendo se esgotado o estoque de camisinhas, eles partiram mesmo para o coito interrompido –, e tampouco dos suores dos dois, e tampouco das suas salivas e dos montes de papel higiênico que teimaram em gastar até para se esfregar nas bochechas. E a desordem dos móveis, as manchas do vinho que trouxeram nos meus lençóis, os contornos dos copos me marcando as mesinhas de cabeceira. E o óleo da porção de batatas fritas que pediram depois de tudo – por que o que saberia fazer um casal como aquele além de comer batatas fritas? O trabalho que a Andréia teve hoje de manhã – e não quero nem imaginar em que estão ficou depois o banheiro –, ora, parece até que limpava os restos de um bacanal. Meus tapetes tiveram de ser retirados para a lavanderia, mas meu colchão permaneceu, imundo e ignorado.

E eu nessa exasperação de ter que agüentar, tantas vezes e tantas pessoas desagradáveis para agüentar. Que sejam higiênicos na medida das suas limitações, era o que eu queria a todo custo poder transmitir. Era aliás a minha mensagem mais urgente à humanidade.

Mas não souberam, coitados, não poderiam saber. Foram-se ontem mesmo, duas horas mais tarde, para o meu alívio, cheios de olhares cúmplices.

Tuesday, July 18, 2006

Manhã chuvosa

Acredito que choveu hoje de manhãzinha. Ninguém tinha ainda aberto as minhas janelas para me liberar a visão, mas o frio que me tomou as paredes dava uma certa impressão de umidade, quem sabe uma névoa de início de manhã.

Lembra um pouco os meus tempos de quarto de família, a Júlia criança me abrindo a janelas bem cedinho, antes de ir para a escola, os postes da Praça Paris ainda acesos no azulado do fim da madrugada, o café fumegando na xícara que ela costumava trazer aqui para cima. Porque, estando sempre atrasada, era comum a Júlia se vestir ao mesmo tempo em que acabava de tomar o café e revisava os deveres de casa. Acendia as minhas lâmpadas, então, e eu me sentia um único e pequeno ponto de luz num universo longínquo. O mar se estendia à minha frente, eu me querendo ainda mais recolhido do que pode ser um cômodo pela própria natureza, aconchegante e íntegro como um grande envoltório, um cobertor. Seguia então os movimentos de Júlia um a um, a pressa de se vestir e os olhos cheios de remela. Assistia-a no meu desejo desesperado de poder ajudá-la de alguma forma, de ter braços que lhe vestissem a camisa ou bocas que lhe soprassem as respostas dos deveres. Ela era tão avoada.

Mas a aflição não chegava a durar: eu sentia – e nisso me via afinal ao menos um pouco útil – que a Júlia precisava de mim para pôr um ponto final nos deveres e no sono, como se só as minhas luzes acesas no frio da manhã para sinalizar que o dia de fato começara, o frio das paredes e o cheiro do café animando os seus sentidos. Bons tempos.

Porque acho que uma das grandes infelicidades de ser hoje um quarto de hotel é essa incapacidade dos hóspedes de acordar cedo, de perceber a manhã como Júlia a percebia quando, em meio ao atabalhoamento da pressa, se voltava para a janela aberta e percebia, como eu, que o início da manhã carregava um algo mais de mágico que nenhum de nós podia definir bem, essa névoa azulada, talvez, e que essa percepção era necessária a que o dia fosse mais espesso, a que o dia se estendesse para um nível além das suas aulas e das minhas horas solitárias. Mas não. Esses meus hóspedes, quando por acaso acordam cedo, vestem-se rapidamente, na penumbra, as janelas fechadas e no máximo um abajur aceso. Nem me lembro mais a última vez em que um miserável qualquer se dignou a abrir um pouco que fosse a janela e me deixou apreender a manhã. Parece que não pensam nisso, que não faz diferença. Ou eu que não sei mais ser o quarto de alguém. Tanto faz. Só sei que minhas paredes estão úmidas, e é só por isso que acredito que chove.

Friday, July 14, 2006

Tentativa de definição

O que é no fim das contas um quarto?
O mais essencial: quatro paredes – na maioria esmagadora dos casos –, um teto, um chão. Porta, janela.
Tenho duas portas: a que dá para o corredor e a mais recente, que me liga ao meu apêndice, um horrendo banheiro que me transformou em suíte desde que decidiram forçar a ser um hotel esta casa velha da qual sou parte. Há coisas com as quais a gente nunca se acostuma.
Já minha única janela é um belo janelão envidraçado, desses que vão quase até o teto, um dos meus orgulhos. Nos longos períodos que se passaram sem ninguém se preocupar em podá-las, as copas das árvores me invadiam quando a janela era aberta. Hoje às vezes posso perceber os ramos se enroscando nas minhas grades de ferro, e me sinto feliz porque me lembra a Júlia.
Além de portas e janelas, hoje sou chão de tacos de madeira, quatro paredes brancas e um teto que nunca ninguém parou para verificar que é inclusive branco. Um quarto, afinal.
Acontece que é pouco. Acontece que eu sou também os móveis, os milhares de camas, mesas, cadeiras, quadros, cortinas e armários que já me mobiliaram ao longo de quase um século. Eu sou também as pessoas que já me habitaram, as mais queridas e as mais insanas, e sou também os sonhos e sussurros que essas minhas paredes envolveram. Todas as palavras que reverberaram pelo meu cimento, os pensamentos das cabeças todas que abriguei, e os travesseiros nas quais elas se deitaram e as lágrimas que sobre eles foram derramadas. Eu fui Júlia por anos e anos, minha primeira e mais querida moradora, e hoje sou a cada semana os hóspedes que passam por mim, os estranhos que me trespassam por tão poucas noites que já nem dá para senti-los como pessoas que habitam. Porque várias delas não são mais que montes de calor e movimento para me sacudir um pouco a imobilidade, para me distrair, o que seja. Consumidores de oxigênio.
Mas talvez, acima de tudo, talvez mais até do que cimento e tijolos – a condição mais primordial –, talvez eu me perceba em primeiro lugar nas palavras que no meu interior já ecoaram, na quantidade de palavras que podem ser ditas em mais de 90 anos e por inumeráveis bocas, e que agora se reorganizam, que agora tomam uma forma, a minha forma, numa massa de concreto que há muito já estivesse presente, suspensa no teto que nunca ninguém parou para olhar, e que agora se concretiza nessas frases.