Memórias, sonhos e reflexões de um quarto de hotel

Por ambientação um sobrado de 1914 na Rua da Glória, antes casa de família, antes pensão, antes refúgio, quase ruína, hoje hotel. Por protagonista e voz o quarto 201. Por palavras suas as que já ecoaram nos seus mais de 90 anos imobilidade, e as frases que aderiram aos tijolos.

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vicsaramago@gmail.com / saramago@stanford.edu

Thursday, November 23, 2006

À espera

Já há 23 dias me meto numa impaciência de querer escrever e não poder. Que eu esteja ocupado demais é desculpa de seres humanos: isso não existe para mim. Que me faltem lembranças ou histórias... só rindo de quem me viesse com algo parecido; se em mim ressoam ainda tantas vozes e lamentos e beijos que poderia eu os ficar aqui até o infinito, reproduzindo-os e recombinando-os, e caísse de velho este sobrado que integro, e fosse o Rio de Janeiro inundado pelos mares das geleiras que derretessem, que se fizessem as catástrofes todas prometidas, enfim, e ainda aqui estaria eu, compenetrado como quem resolve um problema de lógica, ruminando os eventos que já incorporei.
Mas nada disso me ocupa mais que o trabalho dessas linhas, de montá-las. O que me toma o tempo e o pouco de essência vazia que consigo reter, o que me faz, com o nível de mimetismo que só o cimento atinge, permanecer este quase um mês imóvel como um cômodo, é essa pessoa que me habita. Porque a encarno tão bem, porque a assumo como a alma profunda que há tanto desejo. E se as almas pudessem ser mais corpóreas que seus corpos, essa minha habitante seria ainda mais imóvel que sua habitação.
Ela espera. O que, exatamente, eu não sei, nem tenho esperanças de vir a saber. Sei que a tenho em mim e, encarnando-a tanto quanto me é possível, até o ar que me preenche pára, até as reverberações passadas – e conseqüentemente os meus pensamentos – se calam. Todo eu imobilizado, assim, mimetizado na espera apática de minha hóspede, nos seus modos de cimento, há 23 dias.
E creio que há décadas que não saberia eu dizer com tanta exatidão o que é a espera. Não a espera trivial, a espera do elevador, a espera do telefonema, do café da manhã, aquela que se atravessa roendo as unhas e enrolando nos dedos as pontas dos cabelos. Porque esperar não é jogar paciência, ouvir música, ou tampouco estar à Internet ou ao MSN. Não é acompanhar da janela o movimento dos carros ou espremer as espinhas. Isso não é saber esperar.
Esperar é, como minha pobre hóspede, deitar-se de bruços na cama e o vazio à frente. É como, nalgum post antigo talvez tenha eu dito, sentir minuto a minuto a lâmina do relógio. É chegar a este ponto em que já não se espera algo, espera-se simplesmente. Não sabendo se o objeto da espera há de chegar, mas prosseguir mesmo assim. Obstinada, exasperadamente, que a única espera verdadeira é a que se basta, a que se auto-consome.
Esperei com ela, sim, embevecido, esperei o que jamais me será dado conhecer, e nessa espera infrutífera percebo agora o quanto durante esse período voltei a ser cômodo; e o quanto o tempo, com suas reminiscências e movimentos, me foi corroendo ao longo dos anos a minha essência primeira de cômodo, o que não pensa, o que não se preenche.
Mas sendo esse o meu estado, suspensas as minhas idéias ao ponto que me obrigou a minha hóspede, como agora formulo essas frases?, talvez perguntem, como suspendo esse nosso estado de espera que nos fez visceralmente cúmplices não sei bem do quê (espero sabê-lo)? É que minha habitante há cinco minutos abriu a porta e saiu. Veio sem mala e sem mala se foi. Bateu a porta, passou a chave, e eu respirei fundo, quase alívio, e das minhas correntes de ar soaram suspiros da década de 20.
Quanto à hóspede, pode ser que volte, pode ser que não. Saberei esperá-la, e enquanto não vem ela, remôo-me na minha coleção de eventos passados, os que já tiveram dissolvidas as suas esperas.

Wednesday, November 01, 2006

As cabeças nas nuvens

Tenho em mim há já não poucos dias um ser que nunca está onde gostaria, ou onde conviria. Entendem o que digo? Entendem essas pessoas que parecem sempre estar com a cabeça nalgum canto distante do universo, ou mesmo numa cidade próxima, remoendo algum passado que nunca tivesse existido e ainda assim presentes no presente que eu, como espaço que sou, realizo continuamente?

E essa pessoa que me hoje habita é tão desconfortável na medida em que não me deseja de fato habitar, que não mais me aceita por espaço no qual, infeliz ou inevitavelmente, ela se encontra. Vejo-a de instante a instante com os olhos presos no nada, nas janelas, cismando as suas fantasias como se fossem elas de fato possíveis, e quando essa determinada pessoa se dá conta do que há à sua volta, os raios de sol pelas paredes e a cama desfeita, ou seja, isto tudo que sou eu, percebo que ela, ao me perceber, sofre. Isso me enerva talvez mais do que eu gostaria de admitir. Primeiro porque esta pessoa me despertou uma simpatia oculta que torna a mim tudo desagradável como o é a ela – como se eu pudesse me desagradar por estar em mim mesmo. Em segundo lugar, porque nada há de mais desconcertante do que ser habitado por um corpo que não me habita de fato. Como uma alma que se nega a assumir a própria carne – se coubesse uma tal comparação –, ou como uma frase que não assume as próprias palavras – e aí me soa melhor a metáfora, mais assumível, ao menos.

Mas a pessoa que hoje trago comigo me rejeita e, decidida que está a não me ter por espaço que a circunda, sinto-me quase um não-espaço, um espaço sem validade. Me dá então uma vontade enfurecida de não ser mais o espaço que ela ocupa, mas os sonhos que ela traga. E colocamo-nos os dois a cismar com as nossas impossibilidades, como se aí, em pedaços de sonhos e devaneios que jamais se materializarão, pudéssemos enfim encontrar uma unidade. Não a dos átomos, naturalmente; a das assombrações.