Memórias, sonhos e reflexões de um quarto de hotel

Por ambientação um sobrado de 1914 na Rua da Glória, antes casa de família, antes pensão, antes refúgio, quase ruína, hoje hotel. Por protagonista e voz o quarto 201. Por palavras suas as que já ecoaram nos seus mais de 90 anos imobilidade, e as frases que aderiram aos tijolos.

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vicsaramago@gmail.com / saramago@stanford.edu

Friday, February 16, 2007

Frans dá as caras

obs: Para entender melhor a história, é útil ler desde o post intitulado "As cabeças nas nuvens".


- Frans! Você veio, filho da puta! – e Rosa quase que deixara caírem o balde e a vassoura no espanto quando, me adentrando, encontrara aquele sujeito deitado na minha cama rindo num arzinho de canalha, no colo a caixinha aberta com os diamantes reluzindo ao sol e no chão os tacos removidos para fora dos lugares. – Bem que eu vi que era você entrando aqui hoje de manhã, você mesmo. Filho da puta.
Frans continuava com os dentes de ouro reluzindo ao sol. Desde o início eu soubera que só podia esperar dele as maiores trambicagens. Tem gente que não engana.
- Cheguei, minha flor, cheguei. – agora, de pé, chegava-se à Rosa, uma mão se enroscando na cintura dela e na outra a caixinha bem segura. – Precisava de vir te visitar nalgum momento, né? – e lhe tascando um beijo na nuca que ela oferecia – Minha florzinha devia estar com saudade.
A Rosa era muito esperta, eu não duvidava.
- Saudade de você eu vou ficar só depois, querido. – e afastou-se num meio-sorriso, como quem devesse ter muito trabalho a fazer. – E esse teu tesouro aí na tua mão, veio de onde?
- De onde mais, meu bem?
- Sei lá, você sabe que eu não acompanho o que acontece na vida do Helmut.
- Pois devia era saber. O cara é um tapado, foi feito pra ser passado para trás.
- Então foi mesmo do Helmut que você surrupiou as pedrinhas.
- Claro! Ele parece que pede para ser roubado, não tem honestidade que resista.
- Você era empregado dele. Devia ser mais leal.
- E você era a minha garota. Quer que eu seja leal também para você, minha flor?
Rosa se esquivava e sorria:
- Já basta a Inocência, não?
Frans suspirava:
- Você é uma flor, mas a Inocência é um anjo. Só ela para fazer isso tudo por mim, para bolar tudo, essa história de esconder a caixinha nos tacos soltos. Genial.
- E eu tinha falado que dava cobertura para vocês, era só vocês virem para cá.
- Queria é saber por onde ela anda agora. A gente acabou se desencontrando, ela sumiu. Tomara que não tenha dado nenhuma merda. Você sabe como ela era, com aqueles instintos suicidas. Uma louca.
Só eu reparei na brusca alteração de voz da Rosa, na sua postura quase constrangida. Frans não tinha acuidade para esse tipo de sutileza.
- Não soube nada dela?
- Não, nada. Me deixou esses diamantes para pegar aqui e sumiu no mundo.
- Também não a vi. Pelo visto esteve aqui justo quando eu estava de férias.
- Tava de férias, é? – seu rosto se despreocupou novamente. – Bem que eu tinha reparado no teu bronzeado novo, florzinha. – e no que dizia afastava levemente a gola do uniforme e a alça do sutiã, o dedo deslizando pela marca do biquíni.
- Andei mesmo precisando relaxar. Fui pruma praia linda, depois te conto. E vocês aqui, se matando para roubar o coitado do velho, a Inocência que deve ter passado por esse quarto num piscar de olhos nesse último mês só para te deixar essa surpresinha e você por aí, fugindo.
- Fugindo não. Resolvendo uns negócios, viu, querida? Umas coisas importantes, não dava para adiar.
Frans tinha um riso rouco e me dava raiva da complacência com que Rosa se deixava beijar, na cara de falso prazer enquanto Frans lhe passava a mão na bunda e o seu olhar de canalha com tesão que reluzia ao sol, os diamantes ainda bem seguros na outra mão.
- Acho que ainda acabo tendo saudade de você. – ela falava acariciando-lhe o rosto de leve, como quem pensa que seria muito bom mas que não, que era melhor parar por ali. E afastando-se: Vai embora amanhã de manhã, meu bem, e com os diamantes. Te dou cobertura, você vai ver.