Memórias, sonhos e reflexões de um quarto de hotel

Por ambientação um sobrado de 1914 na Rua da Glória, antes casa de família, antes pensão, antes refúgio, quase ruína, hoje hotel. Por protagonista e voz o quarto 201. Por palavras suas as que já ecoaram nos seus mais de 90 anos imobilidade, e as frases que aderiram aos tijolos.

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vicsaramago@gmail.com / saramago@stanford.edu

Friday, October 20, 2006

As perversidades dos relógios de ponteiros

Quanto mais correm os dias e os anos, mais eu me dou conta de que os seres humanos não sabem em absoluto lidar com o tempo. Primeiro inventam as medidas todas, as horas, as semanas e os meses, os relógios de sol e os caminhares das estrelas, para tanta ciência culminar no imenso relógio de cuco que durante décadas esteve encostado numa de minhas paredes.
Lembro-me tão bem de Júlia sentada à escrivaninha, lá pelos anos 40, irrequieta, estudando as provas de escola que nunca entendi bem para que serviam, mas a julgar pela seriedade com que Natália as considerava, que Minha filha deve ser culta e inteligente, e vendo a pobre menina debruçada nos livros, o relógio martelando ao seu lado e ela amiúde se voltando para conferir quantos minutos – ou segundos – se haviam passado desde a última vez em que interrompera a leitura, o último parágrafo lido, o problema de matemática já prestes a se resolver, e me dava nessas horas mais do que nunca a impressão de que ela afinal sentia o tempo como eu. Que sentia os minutos um a um, o peso de cada martelada do pêndulo e o cuco que de hora em hora se manifestava. Eu percebia, aliviado, que ao menos alguém era capaz de se entregar ao tempo tal qual sua própria humanidade o havia concebido. Que era capaz de viver instante a instante, de senti-lo sucessivo como o sentia eu sempre, cada vez que um tic-tac fazia vibrar as minhas paredes, cada vez que algum meu habitante dorme com o relógio ao seu lado, e vejo, desconfortado, que para ele as noites jamais passarão como para mim, com o sono a lhe embaralhar o tempo, a fazê-lo mais palatável, e menos duros os estalidos dos ponteiros.
Os humanos inventaram o relógio e não sabem viver segundo o relógio. Enlouqueceriam se o tivessem sempre à mão, ao pulso que seja, se os relógios que levam aos pulsos lhe pulsassem como esse cuco brutal por décadas pulsou o meu cimento. Por que continuam a fabricar e espalhar relógios, é essa uma grande dúvida, se os relógios nada mais são para eles que instâncias abstratas. Que imaginassem o tempo segundo as suas lembranças e as suas tarefas, que sentissem as horas ociosas passarem mais depressa e as ativas mais vagarosas – e não é a isto que chamam fazer o tempo render? –, talvez fosse mais honesto com si mesmos. Os homens não sentem que o tempo passa quando não estão olhando para os relógios, e por isso são felizes. Talvez cheguem a acreditar que os ponteiros não giram quando fora das vistas das pessoas, que se adiantam e atrasam num passe de mágica, segundo seus instintos e desejos.
Felizmente, quando Júlia abandonou a mim e a essa casa para morar com o marido – o que de maneira alguma considero um acontecimento feliz, no entanto – levou consigo o imenso relógio, e desde então, dos anos em que fui quarto de visita aos de depósito, os de abandono, os de habitantes esparsos e por fim o período de semi-demolição, por todo este tempo eu estive na agradável sensação de não ser ocupado por praticamente relógio algum e, portanto, de não ter de sentir o tempo medido no fio dos ponteiros. Anos felizes, digo, que aliás ainda prosseguem: quem nos dias de hoje colocaria um relógio de ponteiros num quarto de hotel, motel, o que seja? Porque os verdadeiramente perversos são os de ponteiros, os que pulsam e se fazem presentes. Não me incomodam quase os relógios digitais, como o da televisão. São discretos e pequenos.
Esta noite, entretanto, me apareceu um hóspede para me passar a noite. Chegou já tarde e cansado, tomou um banho rápido, se atirou na cama ainda enrolado na toalha, cochilou, acordou, olhou para um lado e para o outro, ergueu do chão uma enorme bolsa, quase sorrateiro, quase como proibido, e dela sacou um relógio despertador de ponteiros infernalmente barulhentos. Acertou o alarme para a manhã seguinte, os olhos pesados e os bocejos, e teve ainda ânimo de pousá-lo sobre a mesinha de cabeceira antes de desmaiar entre as cobertas.
Confesso que não é a primeira vez que me acontece. Meus hóspedes freqüentemente trazem seus relógios, e estes vez por outra não têm o privilégio de serem digitais. Não posso culpá-los, tampouco aos hóspedes. Sabem o que fazem: dormem e esquecem. E eu resto aqui, como agora, imerso no silêncio da madrugada e nos tic-tacs insuportáveis, os instante após o outro e tantos infinitos que faltam, percebendo o tempo com a minúcia que nem o mais sereno dos homens suportaria. Como nas décadas de Júlia, como na época em que ainda havia em mim paciência para suportar as excentricidades de meus habitantes, por pertencermos afinal todos à mesma época. Era mais suportável, quando eu não era um velho quarto que encara tudo do alto do seu quase um século de existência, e pede ao tempo que o poupe dessas pessoas detestáveis que não sabem trazer mais quase nada de novo ou interessante, que peço aos minutos desses ponteiros que não demorem muito a promover a minha inevitável demolição.

Sunday, October 01, 2006

Apêndice ao post anterior

O puro instinto criador não inova, reproduz.

É a faculdade crítica que inventa formas novas.

A obra de arte serve ao crítico simplesmente para sugerir-lhe uma obra nova ou pessoal, que pode não ter nenhuma clara semelhança com a que critica

[A crítica é] uma criação dentro de uma criação.

Oscar Wilde. “O crítico como artista”