Memórias, sonhos e reflexões de um quarto de hotel

Por ambientação um sobrado de 1914 na Rua da Glória, antes casa de família, antes pensão, antes refúgio, quase ruína, hoje hotel. Por protagonista e voz o quarto 201. Por palavras suas as que já ecoaram nos seus mais de 90 anos imobilidade, e as frases que aderiram aos tijolos.

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vicsaramago@gmail.com / saramago@stanford.edu

Monday, December 22, 2008

História Concreta da Arte Humana - Prólogo 2

Lembram daquela moça magrinha, pequenininha, cheia de sardinhas, o nariz arrebitado, que entrou aqui de fininho como quem não quer incomodar? Foi isso há dois posts atrás, no “Prólogo”.
Pois é. Prólogo que se preze é o que vem antes de qualquer coisa, e é precisamente essa qualquer coisa o que agora apresento. É que, sabendo das visitas semanais da menina, me pus a imaginar uma continuação necessária para o caso, e aqui a tenho numa saída não muito insuspeita: a garota gosta de arte – recapitulemos -, desce da Região Serrana toda semana para uma aula de história da arte no Rio, me chega aqui abrindo livros e mais enciclopédias de toda sorte de pinturas, instalações e edifícios. Como não poderia eu estar pensando em arte?
E penso mais: penso que todos os seres humanos são por natureza péssimos críticos de arte, exatamente por serem humanos e, portanto, sujeitos. Pois os livros da menina não cansam de assegurar a importância de um julgamento objetivo por parte do crítico, que o crítico não deve levar em conta seus sentimentos e histórias pessoais ao julgar as artes, e não deve adotar critérios subjetivos, e jamais deve escrever em primeira pessoa, e que deve evitar adjetivos como “bom” ou “ruim”, “feio” ou “bonito”, e por aí vai, até ficar praticamente certo que o crítico, no seu afã de objetividade, é aquele que abre mão de sua natureza carnal para se converter num monte de cimento, num tijolo, uma parede. E sendo eu justamente isto – cimento, tijolo, parede – sou, pela lógica, o crítico ideal. Ou assim me autoproclamo.
Pensei por isso na boa idéia que seria brindar a humanidade com meus brilhantes e ideais julgamentos numa história definitiva da arte humana. Penso numa história que, traçada por um monte de concreto, seja inteiramente concreta. Dona de uma objetividade total, visto que totalmente arquitetada por um total objeto – e o que é mais objetivo que uma parede? –, desejo uma história que ponha fim a todas as pendengas e gritarias promovidas ao longo dos séculos por críticos enfurecidos e descabelados, sem dúvida incapazes de uma frieza implacável como a do meu cimento. Pensei chamá-la “História Concreta da Arte Humana”, mas ainda não estou muito certo. Na verdade, aceito sugestões.
O único problema é que o que eu imaginava ser só um parágrafo introdutório acabou virando um post inteiro, e agora estou cansado para continuar. Fique valendo esse texto de segundo prólogo então, ou prefácio, se quiserem. Havendo gente que escreve livro até com quatro prefácios, acho que dois prólogos não vão mal.
E declaro: estou pronto a apresentar nos próximos dias minhas meditações sobre os templos gregos, matéria do primeiro capítulo da série. Aguardem.

Monday, November 17, 2008

Felicidade

Digamos que houvesse um casal deitado na cama. Quem eram não importa – não importa nem se eram de fato um par, ou se três, se quatro, cinco. Digamos que houvesse cinco pessoas deitadas na minha cama às oito da manhã: eram um casal de cinco, e o casal dormia às oito da manhã, aos primeiros raios de sol. O casal era um grande emaranhado de braços e pernas em meio às pontas dos lençóis. Pois foi isso que eu vi, exatamente – é o que há para ser visto no mundo, suspeito.

O casal se comportava como quem se comporta após ter sono até cair. O casal dormia dum sono profundo e pesado – é o que há para ser feito no mundo, suspeito. Do suspiros de uma pessoa ao ronco de outra, dos olhos semi-abertos de um terceiro ao sorriso semi-fechado de um quarto, e o quinto corpo mexia muito levemente os dedos das mãos quando o primeiro que suspirava suspirava perto do seu rosto. Eram cinco ou seis, pois havia também um que de quando em quando acordava aos pequenos sustos para adormecer em seguida.

Por cima da imobilidade toda dos poucos gestos e respirações, pelos corpos cobertos de lençóis e também de outros corpos e cabelos e suores, como que coroando a obra toda acumulada sobre os colchões e os travesseiros, incidiam de leve os raios de sol pelas frestas das cortinas. Os pelos do braço direito de um rapaz brilhavam, os olhos de uma mulher quase que abriam incomodados pela claridade. Pois eram já quase oito da manhã e ainda todos dormiam como se não houvesse nada mais que fazer nas manhãs, como se fosse isto o mundo.

Uma mosca voava aos bocados por cima de um ombro, uma fileira de formigas se mobilizava ao redor de umas bolotas de açúcar caídas pelo chão junto aos pés da cama. Ninguém acordava. As poeiras da manhã brilhavam aos raios de sol, era muita a poeira.

E eu me cansava por serem todos quase tão imóveis quanto eu, por agirem como se fora o mundo só isto o que eu fazia: nada. Por o sono avançar manhã adentro, é às vezes tão cansativa a imobilidade do sono, como a minha. Eu me entediava, por isso, e desejava bocejar e suspirar e roncar. Eu desejava ter dedos para mover de leve as suas pontas quando me batessem os raios de sol nas paredes, e desejava ter o calor do sol que os fazia a todos ainda suarem de leve apesar de tão imóveis, apesar do tanto de calor que faz um emaranhado de gente muito junta.

Assim enquanto eu pensava uma pessoa acordou suave, pestanejou e delicada retirou uma a uma as mãos e as pernas e o queixo – uma pessoa soterrada de outras é sempre e tanto uma fonte de calor –, a pessoa suava e parecia feliz, os raios de sol agora pelos contornos das coxas e das pernas esticadas. A pessoa vestia uma calça e uma camisa, e uns chinelos e a bolsa ou carteira estava sobre uma poltrona, a pessoa abria a porta e saía das minhas paredes delicada como jamais entrara, e eu como que me comovia de ser às vezes tão doce alguém simplesmente se levantar para se vestir e sair em silêncio, como alguém se desembaraçar do emaranhado que era eu mesmo.

Pois quando a pessoa se foi eu senti, e se pudesse suspirava, como suspiraram dois dos que restavam sobre a cama, como se moveram os outros dois ou três de leve, o emaranhado se reacomodando para perder dois braços e duas pernas e um queixo e mais tanta coisa. O emaranhado precisava aprender a viver sendo menos emaranhado, e eu os compreendia tão bem, como compreendia que uma mão puxasse uma ponta de lençol para cima de si, ou que um braço se abraçasse a uma outra barriga ou a um ombro. É que ninguém acordara, ninguém de fato se movera, e o sol continuava ali como as moscas, as formigas e as minhas paredes, mas em meio a isso tudo o corpo a menos fizera o conjunto menos quente, e esse pouco de calor retirado, todos nós inconscientes lhe sentimos a falta, e nos apertamos em nós mesmos.

Sunday, October 19, 2008

Prólogo

Hoje me apareceu por aqui uma mocinha diferente. Magrinha, pequenininha, cheia de sardinhas, o nariz arrebitado. Entrou de fininho como quem não quer incomodar, o queixo enfiado num cachecol cinzento, a testa coberta por uma boina cinzenta – quase que só lhe apareceriam as sardas e o nariz. Um tipo simpático, e dessa opinião compartilha comigo o rapaz que normalmente fica na recepção do hotel, pois fez questão de acompanhá-la até a porta do quarto para garantir ao menos uns quinze minutinhos de conversa com a donzela.
Desde que veio trabalhar aqui, esse moleque eu o vejo uma média de duas a três vezes por ano. Creio que agora verei mais: a garota mora numa cidade da região serrana, mas vem fazer um curso de história da arte aqui no Rio semanalmente.
- É um curso que eu queria fazer há tanto tempo, você nem tem idéia. O único problema é que é de noite, e acaba tão tarde. Sabe como é, fica muito difícil voltar para a minha cidade nesse horário.
E por ser tão difícil voltar para a sua cidade nesse horário, a garota achou por bem dormir uma noite por semana num hotel aqui no Rio.
- Por isso você reservou uma noite por semana até o fim do ano, então?
Sim, a menina achou melhor fazer as reservas, só para garantir.
- Mas o curso vai até metade do ano que vem. Se tudo der certo, mais tarde continuo fazendo a reserva.
Os olhos do moleque juravam à mocinha que tudo daria certo, que ela poderia fazer tantas reservas quanto lhe agradasse.
- Juro que, se você gostar desse quarto, dou um jeito de reservar ele sempre para você.
Ela me examinou do chão ao teto e aprovou suavemente com a cabeça. A situação era fofa até a exaustão, e me deixava feliz a parte que me toca nessa história toda.
O rapaz então me atravessou e abriu a janela.
- Olha só, de longe ainda dá para ver um pouco do mar. Ouvir dizer que dava para ver o mar todo há décadas atrás, antes de fazerem o Aterro.
A garota bem que se esforçava, afiava a vista, franzia as sobrancelhas, e no entanto não via nada além de prédios e árvores, a igreja ao fundo. Daí se virava para o menino delicada, a voz se sumindo dentro do cachecol.
- Um dia eu vejo o mar. Mas gostei desse quarto, obrigada.
Foi aí que o garoto sorriu como quem toma consciência a contragosto de estar bem no meio do serviço, a voz do dono do hotel berrando seu nome lá da recepção.
- Eu tenho que ir... mas esse quarto é sempre seu, sempre que você quiser.
Nisso saiu correndo e deixou a moça sozinha, a porta aberta e os braços finos agarrados nos livros de história da arte. Daí me ocorreu que, além de pequena e simpática, era uma pessoa cheia de idéias sobre a história da arte. Hesitei por um momento: fazia tanto tempo eu não pensava em arte.
A garota também hesitou por uns momentos, até largar os livros sobre a cama para fechar a porta e começar a ter idéias. E eu gostava de idéias, como gostava da parte que me toca.

Monday, September 08, 2008

Impedimento

Três travestis
Traçam perfis na praça.
Caetano Veloso, "Três travestis"


Ok, agora se animem, que o papo é de sexo. Ou do que quer que se possa chamar o que hoje ocorreu. Porque dar os nomes aos bois é coisa que sempre depende do gosto do freguês.
No caso da madrugada de ontem para hoje, o freguês era um desses que já eu – e você, e ele, e ela e todos nós – conhecemos tão bem: homem, 40 para 50 anos, barbudo, barriga de chope, cara de funcionário público, cara de casado com dois filhos, um do segundo casamento – e posso jurar que era mesmo isso tudo. Digam-me que estou exagerando na esteriotipação do sujeito, e logo vos provarei que estão errados. Pois quem acompanhava o herói-do-censo-comum-desde-os-anos-50 não era uma puta, nem uma noiva, nem uma secretária: eram três travestis.
Os que lêem jornal ou vêem os noticiários ou fofocam por aí já fizeram todas as conexões que eu tenho em mente, não? Então prossigamos.
- Quero ver dar o cu. – disse o primeiro traveco.
- Quero ver dar o cu para mim. – suspirou o segundo.
- Quero ver logo a cor da grana. – desafiou o terceiro.
O homem, coitado, encarava os três embasbacado:
- Dar o cu?!
O segundo avançou de mansinho, com ar de noiva:
- É, meu bem. Queria o quê? Ganhar a Copa do Mundo? - e se esfregava dengoso no chope da barriga.
- N-não... - e dava um risinho sem graça.
O terceiro traveco, como já deu para perceber, era o mais objetivo:
- Olha aqui, freguês que chama a gente ou quer dar ou quer comer. Em que time você joga?
E nisso pôs o pau para fora. O freguês tremeu na base. O primeiro traveco, até então quietinho no seu canto, pensou que não é assim que a banda toca; se tinha vontade de comer o cu do sujeito, precisava ir com jeitinho. Mas ficou quieto: é sempre preferível a lei do menor esforço, afinal.
- Comer dá menos trabalho pra gente, sussurrou o segundo, já acarinhando as têmporas do freguês, no que o conduzia à cama – é gostoso, você vai ver. Nunca fez isso? - o freguês abanava a cabeça, botando os dentes para fora num sorriso – é show de bola, você vai ver.
O primeiro acendeu um cigarro.
- Esse daí não dá o cu nem chovendo canivete.
Mas o segundo não perdia as esperanças:
- Que nada, gostosa. É cada um que aparece, você sabe, cada um que a gente nem imagina.
- Mas esse daí é tímido demais, coitado. Quero ver. Olha como treme.
Os seis olhos se voltaram para a cama onde o sujeito se sentara. Arrependido, parece, tremia feito vara verde. Se me fosse dado ver os seus pensamentos, diria que estava prestes a botar uma nota de ciquenta na mão de cada um e pôr todo mundo para fora dali.
- Então, meu bem – agora o primeiro resolvera investir. Largou o cigarro num cinzeiro e com ele todo o blasé. Convocou o terceiro, o segundo, os três se aproximando devagar. Alguém apagou a luz, o homem não percebeu quem. Tremia que tremia, coitado. Um se chegava aos poucos, lhe desabotoava a camisa. O outro beijava a nuca, os ombros. O outro se ocupava do meio-de-campo para baixo.
Até que não faziam mal trabalho, eu bem sabia. Separadamente, já conhecera os três ao longo desses anos. Juntos é que não. Isso é para poucos.
Um se chegou por trás do homem, era o segundo. Esse daí escasquetou que só sai com o cu do freguês comido, pensou o primeiro, o ex-blasé. E lhe deu ânsias de acender outro cigarro. Mas agora não, agora não, completou de si para si.
O freguês, já deitado e percebendo o segundo traveco prestes a dar o bote – mas prestes mesmo, tudo preparado, quase lá –, o freguês se encrispou todo. Isso que não, pensou provavelmente.
- Agora não, acho melhor não. – sussurrou ao ouvido do segundo.
- Por que não, amor? Está feliz com a gente não?
- Agora não, repetiu indeciso.
O segundo não se fazia de rogado:
- Se você quer ser igual a ele, tem que fazer igual a ele.
Isso é que não, reiterou para si. É demais.
- Vou ao banheiro.
Libertou-se então das seis mãos e os seis olhos e os três paus a se lhe esfregarem. É demais, concluiu.
O primeiro acendeu outro cigarro.
- É o show do intervalo.
- Já vi tudo – observou o terceiro, o objetivo – esse show não tem prorrogação nem a pau.
- Nem sem ele – completou o primeiro. Às vezes acontece de os blasés serem espirituosos.
Daí aparece o freguês. Uma nota de cinquenta na mão de cada um:
- Desculpa, eu me enganei. Cansei. Vou embora. Fica aí o preço, a gente combinou.
E saiu correndo esbaforido, as tralhas todas caindo pelas mãos.
Os travecos já conheciam esse tipo, nem se deram o trabalho de ir atrás.
- Metade do tempo, metade da grana – resmungou o objetivo.
- É... - o blasé estava pras filosofias – quem pode pode, quem não pode se sacode. - E apagou o cigarro. - Quer aparecer no jornal, tem de saber fazer o gol. - E nisso não deixava de transparecer um quê de autocrítica.
O segundo não disse nada. Enrolava os cachos nos dedos, pensativo, num eterno ar de noiva.

Friday, August 08, 2008

O eco do espelho

Detesto espelhos. É sério: os espelhos não sabem de nada. O espelhos não sabem viver. O que quer que se lhes ponha na frente, é o que passa a toque de caixa. Superficialidade até não se poder mais. É um reflexo que vem, um reflexo que vai, e assim está muito bem para eles.
Mas um reflexo é muito pouco. Jamais um espelho saberá chegar ao âmago das coisas. Jamais um espelho saberá pouco mais do que seja um sopro – um sopro, e é tão pouco. É como aquilo que entra por um ouvido e sai pelo outro, transitório, uma imagem.
Eu sei bem do que falo, não duvidem. Já tive tantos espelhos quanto tenho décadas de existência. E digo que um espelho é capaz de passar anos e anos a fio dentro de você, te reproduzindo as paredes e as fissuras e os habitantes e as trovoadas, sim, muitos anos, e ao ser removido sai como se nada soubesse de ti. Porque os espelhos têm a memória fraca dos seus reflexos: as coisas vão, os reflexos vão, e nada nos resta.
A mim é bem diferente. Porque me habitam. Porque quando uma pessoa entra em mim eu a encarno e ela é a minha alma. É muito mais que um reflexo, infinitamente mais. Eu sou a pessoa que venha a me habitar; ela me preenche os vazios numa tal escala que qualquer dos seus movimentos me atordoa, me reverbera para sempre. Expiração, inspiração, é o que me basta a sacudir as partículas todas – e aqui eu queria ter humor o suficiente para supor que me sacodem o esqueleto as movimentações dos meus transeuntes.
Um habitante que habite não é um reflexo que passa. Como tampouco o seria um espelho que me habitasse – mas aí já é outra história. O fato é que tudo o que me acontece dentro da área que cobrem as minhas paredes e o meu teto e o meu chão, tudo o que se passa no meu interior passa como se me passasse por dentro das entranhas, pelo fígado, pelos pulmões, como se me pegasse à carne, uma sujeira interna. A aflição de um alguém que me habite é cortante como um soco no estômago – pois é precisamente um soco no estômago, se é que vocês me entendem.
Espelhos não têm estômagos. Eu tenho. Meu estômago é mais que um reflexo no vidro, é aquilo que revolve por dentro, é bem o ser e ser e ser, nada menos. Meu estômago é o que digere as palavras e as correntes de ar.
Os espelhos não digerem nada, não apreendem nada. O que vem vai do jeito que veio. São reflexos apenas. Detesto espelhos. Não reflito, encarno. E é tão mais o que me dá, que chego a encarnar os reflexos dos espelhos que me habitaram pelas décadas: são os ecos, as palavras não assimiladas que ficaram pairando – essas mesmas que agora vos dirijo. Porque há uma parcela de sons emitidos que ficam por aí, e deles nada posso fazer senão refleti-los, passá-los adiante. Não me culpem, não olhem torto: é o único jeito de me ver livre, de arejar. Pois que me incomodam, pegam-se a mim como sujeira, por poucos que sejam. Dessas palavras eu não assumo a responsabilidade, não vale a pena. Passo-as adiante, deixo-as a vocês. Aceitem-nas, é o mínimo.
E é tão pouco.


***


E esse palavrório todo me lembrou até da Clarice, e com ela dum joguinho bolado faz uns anos por alguém que um dia me habitou. Era uma declaração de amor, uma declaração lispectoreana, e era assim:


- Eu sou uma pergunta? - pergunto.
- Sim.
- Então você já deu a resposta.


Pois então. That's all, folks.

Tuesday, July 01, 2008

A espera

Começo este post com um segredo. Nem se animem, que não é nada de sexo. Continuo hoje com seu compadre de mito e de Freud, a morte.
Não sei se já contei que houve um período eu e todo o edifício estávamos prestes a desabar, tal era o estado de abandono em que nos meteram. Foi lá pelo fim dos 70/ início dos 80. Não havia dono, não havia manutenção, não havia nada. Minha vida estava literalmente num estado de ruína, os dias passavam uns depois dos outros e eu me perguntava quando minhas paredes haviam de afundar de vez nesse submundo que é o chão do primeiro andar.
Dessa época falo pouco, na verdade me lembro muito pouco. Não porque me desagrade dela – quando se é imóvel, qualquer novidade que nos apareça é válida –, mas porque não há muito que lembrar mesmo. Poucas pessoas por aqui passaram, logo poucas palavras foram ditas, logo poucos são os ecos que aqui ressoam. Mas há uns casos interessantes.
Um deles foi o de dois mendigos que me ocuparam por cerca de uma semana. Nem sei como tiveram a coragem de subir ao segundo andar – parece-me que os mendigos estão sempre dispostos a tudo. Sobre eles não digo muito, que não é o que me interessa agora, mas digo isto: houve uma noite em que falaram de morte.
O primeiro virou e começou uma história:
- Foi o que eu ouvi daquele sujeito, que era assim mesmo. O problema daquela cidade era o de não ter nunca ninguém morrido nela. Era nova demais recém-fundada, sem mortos, sem cemitérios. Daí não podia ter fantasmas, óbvio. Nem os da própria cidade, nem os forasteiros. São os mortos que chamam os outros mortos. Daí que, não tendo ninguém esticado as canelas para chamar as outras almas, não havia também almas que fossem puxar as canelas aos vivos pelas madrugadas. Foi isso que o sujeito me contou, sem tirar nem pôr, entende?
O outro mendigo não respondia nada, mais entretido que estava em abrir uma lata de ervilhas com uma tesoura de unha. O primeiro, sem se incomodar da desatenção, prosseguiu:
- Esse que me contou a história afirmava ter medo de um certo homem que assassinara anos atrás, cujo fantasma não o achava de jeito nenhum. É que ele se mandou para cidade nova – ou melhor, ele mesmo fundou cidade nova. Daí foi só quando alguém morreu nessa cidade e o cemitério foi construído, só aí que um defunto chamou o outro, e estava feita a desgraça do pobre do vivo: o fantasma do homem que ele assassinara o encontrou e nunca mais lhe deu descanso.
A narrativa é meio truncada, admito, e talvez por isso mesmo a lata de ervilhas tenha parecido tão mais interessante, mas foi mais ou menos assim. O que me ficou desse episódio, no fim das contas, foi uma certeza: é preciso alguém morrer na gente para que os outros fantasmas nos encontrem, nos habitem. Que um fantasma chame o outro nessa rede invisível até para mim, que um abra a porta ao outro, e nessa troca de gentilezas é questão de tempo até me aparecer o meu próprio fantasma, único e particular, a minha alma superposta.
Por isso meus tijolos sorriram quando Inocência morreu. Ela foi a primeira, ela que chame os outros, a minha porta está aberta. Quem sabe, quem sabe. Um ano já se passou e nenhum espírito me veio abordar, mas tenho esperança. Se fosse mulher pintava as unhas, se fosse homem comprava um carro novo. Se fosse leitor botava um anúncio no jornal, se fosse crente rezava a Santo Antônio.
Sendo quarto, espero.

***

Aliás e a propósito, fiquem de olho e se puderem confiram “A espera”, novo curta-metragem de Fernanda Teixeira, que já foi a Cannes e agora anda circulando por mostras e eventos pela cidade. Se não me falha a memória, é o primeiro filme de sua nova produtora, a Buendía Filmes. É minha sugestão cinematográfica para o mês.

Saturday, June 07, 2008

À maneira de um soluço

Tinha esquecido de dizer que a mulher parece que morreu. Não sei bem: tudo estava como sempre nessas últimas semanas, eu já sem falar nada a ninguém por me dar era um tédio apertado no coração que não tenho, os dias passavam um depois do outro e o menino brincava e fazia perguntas, o homem chorava pela manhã, e era o suficiente. Não procurei saber mais, não me interessou entrar na intimidade dos dois coitados mais do que o bastante para me manter longe do ranço de morte que traziam.
Depois de Inocência deixei de ser imune à morte: comovo-me. Nunca antes ninguém morrera em mim, e confesso, não soube lidar com a situação. É curioso: a pessoa respira em você e por você, e faz a barulheira de que jamais você será capaz, a pessoa traz para dentro de você o calor de carne que jamais os seus tijolos não atingirão – e os meus tijolos acho que sempre foram especialmente frios –, até que de repente cessa isso tudo, o silêncio volta, o cadáver não esquenta mais que os lençóis da cama, nem movimenta o ar com mais alma do que a brisa que me entra pelas janelas.
Eu sempre me ressenti de não saber pôr o ar em movimento.
Eu tenho um silêncio de tumba, parece-me. E me falta um fantasma, é só o que repito. Júlia se foi antes de eu pensar nisso, Inocência foi removida sem me deixar marcas, não resta mais ninguém.
Um fantasma silencioso e frio como eu, sem respirações e tagarelices. Um que se postasse sentado sobre o parapeito e me observasse o interior, os olhos encovados e as pontas dos dedos ossudas, transpassado pelos raios de sol que se insinuassem pela vidraças. Um fantasma de quem eu pudesse dizer: este eu sou. Não é alma gêmea, como já ouvi dizerem, é alma justaposta. Com todos os móveis que abrigo, ainda me sobra espaço para isso.