Memórias, sonhos e reflexões de um quarto de hotel

Por ambientação um sobrado de 1914 na Rua da Glória, antes casa de família, antes pensão, antes refúgio, quase ruína, hoje hotel. Por protagonista e voz o quarto 201. Por palavras suas as que já ecoaram nos seus mais de 90 anos imobilidade, e as frases que aderiram aos tijolos.

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vicsaramago@gmail.com / saramago@stanford.edu

Monday, September 08, 2008

Impedimento

Três travestis
Traçam perfis na praça.
Caetano Veloso, "Três travestis"


Ok, agora se animem, que o papo é de sexo. Ou do que quer que se possa chamar o que hoje ocorreu. Porque dar os nomes aos bois é coisa que sempre depende do gosto do freguês.
No caso da madrugada de ontem para hoje, o freguês era um desses que já eu – e você, e ele, e ela e todos nós – conhecemos tão bem: homem, 40 para 50 anos, barbudo, barriga de chope, cara de funcionário público, cara de casado com dois filhos, um do segundo casamento – e posso jurar que era mesmo isso tudo. Digam-me que estou exagerando na esteriotipação do sujeito, e logo vos provarei que estão errados. Pois quem acompanhava o herói-do-censo-comum-desde-os-anos-50 não era uma puta, nem uma noiva, nem uma secretária: eram três travestis.
Os que lêem jornal ou vêem os noticiários ou fofocam por aí já fizeram todas as conexões que eu tenho em mente, não? Então prossigamos.
- Quero ver dar o cu. – disse o primeiro traveco.
- Quero ver dar o cu para mim. – suspirou o segundo.
- Quero ver logo a cor da grana. – desafiou o terceiro.
O homem, coitado, encarava os três embasbacado:
- Dar o cu?!
O segundo avançou de mansinho, com ar de noiva:
- É, meu bem. Queria o quê? Ganhar a Copa do Mundo? - e se esfregava dengoso no chope da barriga.
- N-não... - e dava um risinho sem graça.
O terceiro traveco, como já deu para perceber, era o mais objetivo:
- Olha aqui, freguês que chama a gente ou quer dar ou quer comer. Em que time você joga?
E nisso pôs o pau para fora. O freguês tremeu na base. O primeiro traveco, até então quietinho no seu canto, pensou que não é assim que a banda toca; se tinha vontade de comer o cu do sujeito, precisava ir com jeitinho. Mas ficou quieto: é sempre preferível a lei do menor esforço, afinal.
- Comer dá menos trabalho pra gente, sussurrou o segundo, já acarinhando as têmporas do freguês, no que o conduzia à cama – é gostoso, você vai ver. Nunca fez isso? - o freguês abanava a cabeça, botando os dentes para fora num sorriso – é show de bola, você vai ver.
O primeiro acendeu um cigarro.
- Esse daí não dá o cu nem chovendo canivete.
Mas o segundo não perdia as esperanças:
- Que nada, gostosa. É cada um que aparece, você sabe, cada um que a gente nem imagina.
- Mas esse daí é tímido demais, coitado. Quero ver. Olha como treme.
Os seis olhos se voltaram para a cama onde o sujeito se sentara. Arrependido, parece, tremia feito vara verde. Se me fosse dado ver os seus pensamentos, diria que estava prestes a botar uma nota de ciquenta na mão de cada um e pôr todo mundo para fora dali.
- Então, meu bem – agora o primeiro resolvera investir. Largou o cigarro num cinzeiro e com ele todo o blasé. Convocou o terceiro, o segundo, os três se aproximando devagar. Alguém apagou a luz, o homem não percebeu quem. Tremia que tremia, coitado. Um se chegava aos poucos, lhe desabotoava a camisa. O outro beijava a nuca, os ombros. O outro se ocupava do meio-de-campo para baixo.
Até que não faziam mal trabalho, eu bem sabia. Separadamente, já conhecera os três ao longo desses anos. Juntos é que não. Isso é para poucos.
Um se chegou por trás do homem, era o segundo. Esse daí escasquetou que só sai com o cu do freguês comido, pensou o primeiro, o ex-blasé. E lhe deu ânsias de acender outro cigarro. Mas agora não, agora não, completou de si para si.
O freguês, já deitado e percebendo o segundo traveco prestes a dar o bote – mas prestes mesmo, tudo preparado, quase lá –, o freguês se encrispou todo. Isso que não, pensou provavelmente.
- Agora não, acho melhor não. – sussurrou ao ouvido do segundo.
- Por que não, amor? Está feliz com a gente não?
- Agora não, repetiu indeciso.
O segundo não se fazia de rogado:
- Se você quer ser igual a ele, tem que fazer igual a ele.
Isso é que não, reiterou para si. É demais.
- Vou ao banheiro.
Libertou-se então das seis mãos e os seis olhos e os três paus a se lhe esfregarem. É demais, concluiu.
O primeiro acendeu outro cigarro.
- É o show do intervalo.
- Já vi tudo – observou o terceiro, o objetivo – esse show não tem prorrogação nem a pau.
- Nem sem ele – completou o primeiro. Às vezes acontece de os blasés serem espirituosos.
Daí aparece o freguês. Uma nota de cinquenta na mão de cada um:
- Desculpa, eu me enganei. Cansei. Vou embora. Fica aí o preço, a gente combinou.
E saiu correndo esbaforido, as tralhas todas caindo pelas mãos.
Os travecos já conheciam esse tipo, nem se deram o trabalho de ir atrás.
- Metade do tempo, metade da grana – resmungou o objetivo.
- É... - o blasé estava pras filosofias – quem pode pode, quem não pode se sacode. - E apagou o cigarro. - Quer aparecer no jornal, tem de saber fazer o gol. - E nisso não deixava de transparecer um quê de autocrítica.
O segundo não disse nada. Enrolava os cachos nos dedos, pensativo, num eterno ar de noiva.

10 Comments:

Anonymous Anonymous said...

oi amiga, li os dois ultimos posts. Quanto ao dos travecos, muito espirituoso, adorei. Vc tem umas frases ótimas. Quanto ao do espelho, achei fofo, e pela primeira vez senti o "poder" do quarto de hotel...
bjus
Renan Ji

9/09/2008 7:01 AM  
Blogger alineaimee said...

Oi, Vic.
Muito bom esse conto, engraçado. Mas achei aí uma pegadinha machadiana: como o quarto 201 pode saber o pensamento do traveco? ("Esse daí escasquetou que só sai com o cu do freguês comido, pensou o primeiro, o ex-blasé. E lhe deu ânsias de acender outro cigarro. Mas agora não, agora não, completou de si para si.")
Beijoca.

9/11/2008 4:54 AM  
Blogger Victoria Saramago said...

hahaha na mosca, Aline! É que esse quarto tem uma mania de se fazer de machadiano que às vezes nem eu aguento! Apesar de ser um pouco difícil imaginar Machado falando de travestis...
bjao

9/15/2008 8:11 PM  
Blogger Carol M. said...

Vic, registrando minha segunda passagem por aqui!
Achei esse post no mínimo muito espirituoso - e isso sem mencionar certas punch lines.

Keep writing.

Até breve.

Beijos todos!

9/24/2008 11:05 AM  
Blogger Wally Jacobsen said...

This comment has been removed by the author.

9/24/2008 5:44 PM  
Blogger Wally Jacobsen said...

This comment has been removed by the author.

9/24/2008 5:48 PM  
Blogger Wally Jacobsen said...

Ahahah..."...,Num eterno ar de noiva." é ótimo! Pena que o Sr. Machado de Assis não está aqui, mas que lembra, lembra...

9/29/2008 4:00 AM  
Anonymous Anonymous said...

Muito bem concatenado, admirável. Gostei do humor sem escrúpulos, mas sugiro que olhes no segundo parágrafo a concordância entre "Digam-me" e "vos provarei", além do trema em "cinqüenta" mais adiante (já é válida a Reforma?, nem o sei). Desculpa-me, compreendo que sou chato quanto a isso, porém tem contigo que apreciei a leitura.
Mereces novas visitas, até breve.

10/02/2008 11:01 PM  
Anonymous Anonymous said...

Parece uma versão Parada Gay daqueles quadros de aposta dos Trapalhões. Ri muito. :**

10/15/2008 6:16 AM  
Anonymous Anonymous said...

Gostei do texto Vic, bem divertido. Esse quarto deve ter muita história para contar...

10/19/2008 9:45 AM  

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