Impedimento
Três travestis
Traçam perfis na praça.
Caetano Veloso, "Três travestis"
Ok, agora se animem, que o papo é de sexo. Ou do que quer que se possa chamar o que hoje ocorreu. Porque dar os nomes aos bois é coisa que sempre depende do gosto do freguês.
No caso da madrugada de ontem para hoje, o freguês era um desses que já eu – e você, e ele, e ela e todos nós – conhecemos tão bem: homem, 40 para 50 anos, barbudo, barriga de chope, cara de funcionário público, cara de casado com dois filhos, um do segundo casamento – e posso jurar que era mesmo isso tudo. Digam-me que estou exagerando na esteriotipação do sujeito, e logo vos provarei que estão errados. Pois quem acompanhava o herói-do-censo-comum-desde-os-anos-50 não era uma puta, nem uma noiva, nem uma secretária: eram três travestis.
Os que lêem jornal ou vêem os noticiários ou fofocam por aí já fizeram todas as conexões que eu tenho em mente, não? Então prossigamos.
- Quero ver dar o cu. – disse o primeiro traveco.
- Quero ver dar o cu para mim. – suspirou o segundo.
- Quero ver logo a cor da grana. – desafiou o terceiro.
O homem, coitado, encarava os três embasbacado:
- Dar o cu?!
O segundo avançou de mansinho, com ar de noiva:
- É, meu bem. Queria o quê? Ganhar a Copa do Mundo? - e se esfregava dengoso no chope da barriga.
- N-não... - e dava um risinho sem graça.
O terceiro traveco, como já deu para perceber, era o mais objetivo:
- Olha aqui, freguês que chama a gente ou quer dar ou quer comer. Em que time você joga?
E nisso pôs o pau para fora. O freguês tremeu na base. O primeiro traveco, até então quietinho no seu canto, pensou que não é assim que a banda toca; se tinha vontade de comer o cu do sujeito, precisava ir com jeitinho. Mas ficou quieto: é sempre preferível a lei do menor esforço, afinal.
- Comer dá menos trabalho pra gente, sussurrou o segundo, já acarinhando as têmporas do freguês, no que o conduzia à cama – é gostoso, você vai ver. Nunca fez isso? - o freguês abanava a cabeça, botando os dentes para fora num sorriso – é show de bola, você vai ver.
O primeiro acendeu um cigarro.
- Esse daí não dá o cu nem chovendo canivete.
Mas o segundo não perdia as esperanças:
- Que nada, gostosa. É cada um que aparece, você sabe, cada um que a gente nem imagina.
- Mas esse daí é tímido demais, coitado. Quero ver. Olha como treme.
Os seis olhos se voltaram para a cama onde o sujeito se sentara. Arrependido, parece, tremia feito vara verde. Se me fosse dado ver os seus pensamentos, diria que estava prestes a botar uma nota de ciquenta na mão de cada um e pôr todo mundo para fora dali.
- Então, meu bem – agora o primeiro resolvera investir. Largou o cigarro num cinzeiro e com ele todo o blasé. Convocou o terceiro, o segundo, os três se aproximando devagar. Alguém apagou a luz, o homem não percebeu quem. Tremia que tremia, coitado. Um se chegava aos poucos, lhe desabotoava a camisa. O outro beijava a nuca, os ombros. O outro se ocupava do meio-de-campo para baixo.
Até que não faziam mal trabalho, eu bem sabia. Separadamente, já conhecera os três ao longo desses anos. Juntos é que não. Isso é para poucos.
Um se chegou por trás do homem, era o segundo. Esse daí escasquetou que só sai com o cu do freguês comido, pensou o primeiro, o ex-blasé. E lhe deu ânsias de acender outro cigarro. Mas agora não, agora não, completou de si para si.
O freguês, já deitado e percebendo o segundo traveco prestes a dar o bote – mas prestes mesmo, tudo preparado, quase lá –, o freguês se encrispou todo. Isso que não, pensou provavelmente.
- Agora não, acho melhor não. – sussurrou ao ouvido do segundo.
- Por que não, amor? Está feliz com a gente não?
- Agora não, repetiu indeciso.
O segundo não se fazia de rogado:
- Se você quer ser igual a ele, tem que fazer igual a ele.
Isso é que não, reiterou para si. É demais.
- Vou ao banheiro.
Libertou-se então das seis mãos e os seis olhos e os três paus a se lhe esfregarem. É demais, concluiu.
O primeiro acendeu outro cigarro.
- É o show do intervalo.
- Já vi tudo – observou o terceiro, o objetivo – esse show não tem prorrogação nem a pau.
- Nem sem ele – completou o primeiro. Às vezes acontece de os blasés serem espirituosos.
Daí aparece o freguês. Uma nota de cinquenta na mão de cada um:
- Desculpa, eu me enganei. Cansei. Vou embora. Fica aí o preço, a gente combinou.
E saiu correndo esbaforido, as tralhas todas caindo pelas mãos.
Os travecos já conheciam esse tipo, nem se deram o trabalho de ir atrás.
- Metade do tempo, metade da grana – resmungou o objetivo.
- É... - o blasé estava pras filosofias – quem pode pode, quem não pode se sacode. - E apagou o cigarro. - Quer aparecer no jornal, tem de saber fazer o gol. - E nisso não deixava de transparecer um quê de autocrítica.
O segundo não disse nada. Enrolava os cachos nos dedos, pensativo, num eterno ar de noiva.
Traçam perfis na praça.
Caetano Veloso, "Três travestis"
Ok, agora se animem, que o papo é de sexo. Ou do que quer que se possa chamar o que hoje ocorreu. Porque dar os nomes aos bois é coisa que sempre depende do gosto do freguês.
No caso da madrugada de ontem para hoje, o freguês era um desses que já eu – e você, e ele, e ela e todos nós – conhecemos tão bem: homem, 40 para 50 anos, barbudo, barriga de chope, cara de funcionário público, cara de casado com dois filhos, um do segundo casamento – e posso jurar que era mesmo isso tudo. Digam-me que estou exagerando na esteriotipação do sujeito, e logo vos provarei que estão errados. Pois quem acompanhava o herói-do-censo-comum-desde-os-anos-50 não era uma puta, nem uma noiva, nem uma secretária: eram três travestis.
Os que lêem jornal ou vêem os noticiários ou fofocam por aí já fizeram todas as conexões que eu tenho em mente, não? Então prossigamos.
- Quero ver dar o cu. – disse o primeiro traveco.
- Quero ver dar o cu para mim. – suspirou o segundo.
- Quero ver logo a cor da grana. – desafiou o terceiro.
O homem, coitado, encarava os três embasbacado:
- Dar o cu?!
O segundo avançou de mansinho, com ar de noiva:
- É, meu bem. Queria o quê? Ganhar a Copa do Mundo? - e se esfregava dengoso no chope da barriga.
- N-não... - e dava um risinho sem graça.
O terceiro traveco, como já deu para perceber, era o mais objetivo:
- Olha aqui, freguês que chama a gente ou quer dar ou quer comer. Em que time você joga?
E nisso pôs o pau para fora. O freguês tremeu na base. O primeiro traveco, até então quietinho no seu canto, pensou que não é assim que a banda toca; se tinha vontade de comer o cu do sujeito, precisava ir com jeitinho. Mas ficou quieto: é sempre preferível a lei do menor esforço, afinal.
- Comer dá menos trabalho pra gente, sussurrou o segundo, já acarinhando as têmporas do freguês, no que o conduzia à cama – é gostoso, você vai ver. Nunca fez isso? - o freguês abanava a cabeça, botando os dentes para fora num sorriso – é show de bola, você vai ver.
O primeiro acendeu um cigarro.
- Esse daí não dá o cu nem chovendo canivete.
Mas o segundo não perdia as esperanças:
- Que nada, gostosa. É cada um que aparece, você sabe, cada um que a gente nem imagina.
- Mas esse daí é tímido demais, coitado. Quero ver. Olha como treme.
Os seis olhos se voltaram para a cama onde o sujeito se sentara. Arrependido, parece, tremia feito vara verde. Se me fosse dado ver os seus pensamentos, diria que estava prestes a botar uma nota de ciquenta na mão de cada um e pôr todo mundo para fora dali.
- Então, meu bem – agora o primeiro resolvera investir. Largou o cigarro num cinzeiro e com ele todo o blasé. Convocou o terceiro, o segundo, os três se aproximando devagar. Alguém apagou a luz, o homem não percebeu quem. Tremia que tremia, coitado. Um se chegava aos poucos, lhe desabotoava a camisa. O outro beijava a nuca, os ombros. O outro se ocupava do meio-de-campo para baixo.
Até que não faziam mal trabalho, eu bem sabia. Separadamente, já conhecera os três ao longo desses anos. Juntos é que não. Isso é para poucos.
Um se chegou por trás do homem, era o segundo. Esse daí escasquetou que só sai com o cu do freguês comido, pensou o primeiro, o ex-blasé. E lhe deu ânsias de acender outro cigarro. Mas agora não, agora não, completou de si para si.
O freguês, já deitado e percebendo o segundo traveco prestes a dar o bote – mas prestes mesmo, tudo preparado, quase lá –, o freguês se encrispou todo. Isso que não, pensou provavelmente.
- Agora não, acho melhor não. – sussurrou ao ouvido do segundo.
- Por que não, amor? Está feliz com a gente não?
- Agora não, repetiu indeciso.
O segundo não se fazia de rogado:
- Se você quer ser igual a ele, tem que fazer igual a ele.
Isso é que não, reiterou para si. É demais.
- Vou ao banheiro.
Libertou-se então das seis mãos e os seis olhos e os três paus a se lhe esfregarem. É demais, concluiu.
O primeiro acendeu outro cigarro.
- É o show do intervalo.
- Já vi tudo – observou o terceiro, o objetivo – esse show não tem prorrogação nem a pau.
- Nem sem ele – completou o primeiro. Às vezes acontece de os blasés serem espirituosos.
Daí aparece o freguês. Uma nota de cinquenta na mão de cada um:
- Desculpa, eu me enganei. Cansei. Vou embora. Fica aí o preço, a gente combinou.
E saiu correndo esbaforido, as tralhas todas caindo pelas mãos.
Os travecos já conheciam esse tipo, nem se deram o trabalho de ir atrás.
- Metade do tempo, metade da grana – resmungou o objetivo.
- É... - o blasé estava pras filosofias – quem pode pode, quem não pode se sacode. - E apagou o cigarro. - Quer aparecer no jornal, tem de saber fazer o gol. - E nisso não deixava de transparecer um quê de autocrítica.
O segundo não disse nada. Enrolava os cachos nos dedos, pensativo, num eterno ar de noiva.
10 Comments:
oi amiga, li os dois ultimos posts. Quanto ao dos travecos, muito espirituoso, adorei. Vc tem umas frases ótimas. Quanto ao do espelho, achei fofo, e pela primeira vez senti o "poder" do quarto de hotel...
bjus
Renan Ji
Oi, Vic.
Muito bom esse conto, engraçado. Mas achei aí uma pegadinha machadiana: como o quarto 201 pode saber o pensamento do traveco? ("Esse daí escasquetou que só sai com o cu do freguês comido, pensou o primeiro, o ex-blasé. E lhe deu ânsias de acender outro cigarro. Mas agora não, agora não, completou de si para si.")
Beijoca.
hahaha na mosca, Aline! É que esse quarto tem uma mania de se fazer de machadiano que às vezes nem eu aguento! Apesar de ser um pouco difícil imaginar Machado falando de travestis...
bjao
Vic, registrando minha segunda passagem por aqui!
Achei esse post no mínimo muito espirituoso - e isso sem mencionar certas punch lines.
Keep writing.
Até breve.
Beijos todos!
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Ahahah..."...,Num eterno ar de noiva." é ótimo! Pena que o Sr. Machado de Assis não está aqui, mas que lembra, lembra...
Muito bem concatenado, admirável. Gostei do humor sem escrúpulos, mas sugiro que olhes no segundo parágrafo a concordância entre "Digam-me" e "vos provarei", além do trema em "cinqüenta" mais adiante (já é válida a Reforma?, nem o sei). Desculpa-me, compreendo que sou chato quanto a isso, porém tem contigo que apreciei a leitura.
Mereces novas visitas, até breve.
Parece uma versão Parada Gay daqueles quadros de aposta dos Trapalhões. Ri muito. :**
Gostei do texto Vic, bem divertido. Esse quarto deve ter muita história para contar...
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