Memórias, sonhos e reflexões de um quarto de hotel

Por ambientação um sobrado de 1914 na Rua da Glória, antes casa de família, antes pensão, antes refúgio, quase ruína, hoje hotel. Por protagonista e voz o quarto 201. Por palavras suas as que já ecoaram nos seus mais de 90 anos imobilidade, e as frases que aderiram aos tijolos.

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vicsaramago@gmail.com / saramago@stanford.edu

Friday, August 08, 2008

O eco do espelho

Detesto espelhos. É sério: os espelhos não sabem de nada. O espelhos não sabem viver. O que quer que se lhes ponha na frente, é o que passa a toque de caixa. Superficialidade até não se poder mais. É um reflexo que vem, um reflexo que vai, e assim está muito bem para eles.
Mas um reflexo é muito pouco. Jamais um espelho saberá chegar ao âmago das coisas. Jamais um espelho saberá pouco mais do que seja um sopro – um sopro, e é tão pouco. É como aquilo que entra por um ouvido e sai pelo outro, transitório, uma imagem.
Eu sei bem do que falo, não duvidem. Já tive tantos espelhos quanto tenho décadas de existência. E digo que um espelho é capaz de passar anos e anos a fio dentro de você, te reproduzindo as paredes e as fissuras e os habitantes e as trovoadas, sim, muitos anos, e ao ser removido sai como se nada soubesse de ti. Porque os espelhos têm a memória fraca dos seus reflexos: as coisas vão, os reflexos vão, e nada nos resta.
A mim é bem diferente. Porque me habitam. Porque quando uma pessoa entra em mim eu a encarno e ela é a minha alma. É muito mais que um reflexo, infinitamente mais. Eu sou a pessoa que venha a me habitar; ela me preenche os vazios numa tal escala que qualquer dos seus movimentos me atordoa, me reverbera para sempre. Expiração, inspiração, é o que me basta a sacudir as partículas todas – e aqui eu queria ter humor o suficiente para supor que me sacodem o esqueleto as movimentações dos meus transeuntes.
Um habitante que habite não é um reflexo que passa. Como tampouco o seria um espelho que me habitasse – mas aí já é outra história. O fato é que tudo o que me acontece dentro da área que cobrem as minhas paredes e o meu teto e o meu chão, tudo o que se passa no meu interior passa como se me passasse por dentro das entranhas, pelo fígado, pelos pulmões, como se me pegasse à carne, uma sujeira interna. A aflição de um alguém que me habite é cortante como um soco no estômago – pois é precisamente um soco no estômago, se é que vocês me entendem.
Espelhos não têm estômagos. Eu tenho. Meu estômago é mais que um reflexo no vidro, é aquilo que revolve por dentro, é bem o ser e ser e ser, nada menos. Meu estômago é o que digere as palavras e as correntes de ar.
Os espelhos não digerem nada, não apreendem nada. O que vem vai do jeito que veio. São reflexos apenas. Detesto espelhos. Não reflito, encarno. E é tão mais o que me dá, que chego a encarnar os reflexos dos espelhos que me habitaram pelas décadas: são os ecos, as palavras não assimiladas que ficaram pairando – essas mesmas que agora vos dirijo. Porque há uma parcela de sons emitidos que ficam por aí, e deles nada posso fazer senão refleti-los, passá-los adiante. Não me culpem, não olhem torto: é o único jeito de me ver livre, de arejar. Pois que me incomodam, pegam-se a mim como sujeira, por poucos que sejam. Dessas palavras eu não assumo a responsabilidade, não vale a pena. Passo-as adiante, deixo-as a vocês. Aceitem-nas, é o mínimo.
E é tão pouco.


***


E esse palavrório todo me lembrou até da Clarice, e com ela dum joguinho bolado faz uns anos por alguém que um dia me habitou. Era uma declaração de amor, uma declaração lispectoreana, e era assim:


- Eu sou uma pergunta? - pergunto.
- Sim.
- Então você já deu a resposta.


Pois então. That's all, folks.