Memórias, sonhos e reflexões de um quarto de hotel

Por ambientação um sobrado de 1914 na Rua da Glória, antes casa de família, antes pensão, antes refúgio, quase ruína, hoje hotel. Por protagonista e voz o quarto 201. Por palavras suas as que já ecoaram nos seus mais de 90 anos imobilidade, e as frases que aderiram aos tijolos.

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vicsaramago@gmail.com / saramago@stanford.edu

Tuesday, July 01, 2008

A espera

Começo este post com um segredo. Nem se animem, que não é nada de sexo. Continuo hoje com seu compadre de mito e de Freud, a morte.
Não sei se já contei que houve um período eu e todo o edifício estávamos prestes a desabar, tal era o estado de abandono em que nos meteram. Foi lá pelo fim dos 70/ início dos 80. Não havia dono, não havia manutenção, não havia nada. Minha vida estava literalmente num estado de ruína, os dias passavam uns depois dos outros e eu me perguntava quando minhas paredes haviam de afundar de vez nesse submundo que é o chão do primeiro andar.
Dessa época falo pouco, na verdade me lembro muito pouco. Não porque me desagrade dela – quando se é imóvel, qualquer novidade que nos apareça é válida –, mas porque não há muito que lembrar mesmo. Poucas pessoas por aqui passaram, logo poucas palavras foram ditas, logo poucos são os ecos que aqui ressoam. Mas há uns casos interessantes.
Um deles foi o de dois mendigos que me ocuparam por cerca de uma semana. Nem sei como tiveram a coragem de subir ao segundo andar – parece-me que os mendigos estão sempre dispostos a tudo. Sobre eles não digo muito, que não é o que me interessa agora, mas digo isto: houve uma noite em que falaram de morte.
O primeiro virou e começou uma história:
- Foi o que eu ouvi daquele sujeito, que era assim mesmo. O problema daquela cidade era o de não ter nunca ninguém morrido nela. Era nova demais recém-fundada, sem mortos, sem cemitérios. Daí não podia ter fantasmas, óbvio. Nem os da própria cidade, nem os forasteiros. São os mortos que chamam os outros mortos. Daí que, não tendo ninguém esticado as canelas para chamar as outras almas, não havia também almas que fossem puxar as canelas aos vivos pelas madrugadas. Foi isso que o sujeito me contou, sem tirar nem pôr, entende?
O outro mendigo não respondia nada, mais entretido que estava em abrir uma lata de ervilhas com uma tesoura de unha. O primeiro, sem se incomodar da desatenção, prosseguiu:
- Esse que me contou a história afirmava ter medo de um certo homem que assassinara anos atrás, cujo fantasma não o achava de jeito nenhum. É que ele se mandou para cidade nova – ou melhor, ele mesmo fundou cidade nova. Daí foi só quando alguém morreu nessa cidade e o cemitério foi construído, só aí que um defunto chamou o outro, e estava feita a desgraça do pobre do vivo: o fantasma do homem que ele assassinara o encontrou e nunca mais lhe deu descanso.
A narrativa é meio truncada, admito, e talvez por isso mesmo a lata de ervilhas tenha parecido tão mais interessante, mas foi mais ou menos assim. O que me ficou desse episódio, no fim das contas, foi uma certeza: é preciso alguém morrer na gente para que os outros fantasmas nos encontrem, nos habitem. Que um fantasma chame o outro nessa rede invisível até para mim, que um abra a porta ao outro, e nessa troca de gentilezas é questão de tempo até me aparecer o meu próprio fantasma, único e particular, a minha alma superposta.
Por isso meus tijolos sorriram quando Inocência morreu. Ela foi a primeira, ela que chame os outros, a minha porta está aberta. Quem sabe, quem sabe. Um ano já se passou e nenhum espírito me veio abordar, mas tenho esperança. Se fosse mulher pintava as unhas, se fosse homem comprava um carro novo. Se fosse leitor botava um anúncio no jornal, se fosse crente rezava a Santo Antônio.
Sendo quarto, espero.

***

Aliás e a propósito, fiquem de olho e se puderem confiram “A espera”, novo curta-metragem de Fernanda Teixeira, que já foi a Cannes e agora anda circulando por mostras e eventos pela cidade. Se não me falha a memória, é o primeiro filme de sua nova produtora, a Buendía Filmes. É minha sugestão cinematográfica para o mês.