Memórias, sonhos e reflexões de um quarto de hotel

Por ambientação um sobrado de 1914 na Rua da Glória, antes casa de família, antes pensão, antes refúgio, quase ruína, hoje hotel. Por protagonista e voz o quarto 201. Por palavras suas as que já ecoaram nos seus mais de 90 anos imobilidade, e as frases que aderiram aos tijolos.

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vicsaramago@gmail.com / saramago@stanford.edu

Monday, September 25, 2006

Joana a contragosto: uma resenha

Hoje abriguei, com estas paredes que os guindastes hão de demolir, uma das situações mais curiosas que me acometeram desde que me tornei quarto de hotel, no início dos 90.
Começou há uns anos atrás. Era um casalzinho desses nada de especial, como ademais eu devo ter comentado aqui vez por outra, as secretárias e putas que me habitam, os carecas.
Como o sujeito, não propriamente um careca, mas nos seus bons esteriótipos das barrigas de chope, um paulista, ao que me consta, nos seus ares de romântico. A menina uma carioca e uma biscate, como percebi estar a todo momento na ponta da língua do nosso paulistano, ou aproveitadora, se assim se preferir. Joana, uma maluca com cara de índia que já não é a primeira vez me aparece, me adentra as paredes com seus professores barbudos e eventuais travestis, artistas, como diz ela, a estudante de cinema, ao que me consta, ou como ela mesma a todo instante se agrada de repetir. Acho que gostava em especial de mim, não sei, pelas duas ou três vezes que me habitou naquela época. Eu, da minha parte, naturalmente não me incomodo. É uma personagem divertida.
Mas o que digo não é nem sobre ela, e quase tampouco do sexo dos dois. Que transcorreu no fim das contas como os de todos os desconhecidos que teimam e se fazer de gostosos: a boa meia dúzia de ais e os gemidos, as poses e finjamos que podemos. Talvez um pouco mais teatral, este, com toda a encenação que à literatura e ao cinema convém inspirar.
Porque aí a novidade: que esse sujeito era na verdade um escritor, e que na verdade via tudo com os quatro olhos de quem pensa reaproveitar a cena nos seus outros objetivos. Que me examinava cada pedaço, cada canto, cada móvel, como reparei a princípio espantado, até que se explicasse num diálogo pós-sexo entre os dois, ela nos cigarros e olhares lânguidos, ele dando um nó na última das camisinhas usadas:
- Ainda escrevo sobre isso, Joana.
- Escreve aí, meu amor. Só não diz que esse hotel fica na Glória.
Ele não entendeu.
- É, vai por mim. Que fica no Largo do Machado, vai.
Confesso que me enciumei, me trocarem desse jeito por um hotelzinho qualquer do Largo do Machado, que no fim das contas não era nada, que sequer já devia ter tido Joana por habitante.
Mas eles falavam do livro, no qual tanta coisa se construiria, como o romancista prosseguia em seu monólogo, que diria terem transado cinco vezes – sem camisinha –, e diria que se haviam conhecido antes,
- Fala que eu te procurei – completava ela, o cigarro queimando – que te mandei uma foto da minha bunda por e-mail, e da minha xoxota em corte conservador também, e inclusive que disse que você era o maior escritor do Brasil e que te esperava aqui, bêbada de uísque, pra dar pra você.
Ele bebia uma lata de cerveja e aprovava com a cabeça. Era um sujeito engraçado, simpático. Certamente incapaz de sentir o que quer que fosse pela Joana, mas imaginativo o suficiente para montar os seus castelos. Escreveria o seu livro, era certo, e saberia me excluir cuidadosamente, assim como acataria toda a meia dúzia de clichês que ela sugeria. Deviam ter se conhecido por aqui mesmo, pela Lapa. O tipo de situação que eu já cansei de presenciar. Divertiam-se, ele repetindo que quem sabe afirmaria tê-la amado, que não conseguiria esquecê-la, E os filhos que teríamos, continuava ela, uma filha indiazinha que nem eu lambuzada de chicabom, que tal?
Ao vê-los sair do meu prédio e entrar num táxi, pensei ligeiramente que gostaria de poder ler o livro, que o cara havia de escrever algo que de fato prestasse, e me enfureci por ser tão provável que jamais viesse a ouvir falar nele, como jamais me reapareceu Joana desde aquele dia.
Pois bem. Isso foi há uns anos. Hoje à tarde eu estava num tédio profundo, os pensamentos nos mendigos vizinhos e afins, quando, ao contrário de tudo o que deduzi do comportamento humano nesses mais de 90 anos de existência, me aparece no portal a cara de ninguém menos que o próprio escritor. Acanhado, as olheiras maiores e quem sabe até um princípio de choro, assim me soava ele, e o porteiro ao seu lado lhe dizia que entrasse, que examinasse o quarto, e ele Não, não precisa, só queria olhar assim de longe, e de tão amargurado quase desejei que não tivesse vindo, quase duvidei da latinha de cerveja que bebera naquela noite, sereno e sorridente, repetindo a Joana, entre risadas, o seu propósito de fazer um livro no qual inventaria amá-la.
Foi uma cena rápida, sequer cheguei a tê-lo entre as minhas paredes. Mas suspeitei que fingisse mais do que aparentava naquela noite, que sentisse deveras algo que o valha pela biscateira. Suspeitei que a latinha de cerveja fosse só uma desculpa à suas despretensões. E eu, que ao longo das décadas só soube fingir ser os outros ao sê-los tão completamente, vendo-o ali num sofrimento sedimentado a ponto de impedir que transpusesse a minha porta, ora, por tudo o que acreditei que ele não sentira naquela noite, percebi meu engano e me achei perfeitamente idiota.
Pensei então no livro, em que seria contado tudo o que supostamente não fora. E não digo que não me tenha consumido a curiosidade de saber se o meu romancista dos olhos desanimados de hoje à tarde encontrara ânimo a produzi-lo, se tirara do episódio e das próprias fantasias umas boas centenas de páginas, se achara o lirismo que não aparentava ao lado de Joana.
Fato é que os anos já passaram, e se o tal livro não tiver saído até hoje – a julgar pela expressão do indivíduo nessa tarde –, é possível que não saia mais. Mas, uma vez pronto e publicado, que o leiam os outros no meu lugar, por mim, pela minha impossibilidade. Porque, pelos fingimentos e as amarguras, pelo contragosto desta tarde ao menos, é certo que há de ser coisa boa.


Joana a contragosto
Marcelo Mirisola
187 páginas, R$ 28.
Editora Record


E para uma resenha “em corte conservador”, acessem:

http://www.almanaquevirtual.com.br/ler.php?id=3648&tipo=9&cot=1

Saturday, September 23, 2006

À tarde

É alguma coisa com a tarde, talvez, ou com a vida, a pedra, o que seja, que eu não sei ainda exprimir – que não me tenham ecoado as frases suficientes a que o diga –, mas falta alguma coisa tão coisa nessa minha tarde que já quase não dá vontade de ter gente entrando e saindo, que já quase não dá vontade de ser gente – se um pouco gente eu puder me considerar, pelas décadas de convívio ao menos. Como se eu já não soubesse sequer ser quarto de hotel, não podendo mais suportar os outros que me vêm e me vão e me são, submisso à presença alheia como um pobre monte de pedras que sou, como um mendigo que, à falta de uma casa – do seu monte de pedras – não tivesse meios de se colocar fora das vistas dos transeuntes.
Eu não sei o que é um mendigo, eu nunca fui um mendigo, nesse sentido de me ter algum deles adentrado. Os mendigos, exilados que estão desses cômodos das classes médias – como mais freqüentemente me classificam –, mas ouço deles, seus suspiros e pedidos, e sinto-os tão próximos como um meu olho que se pudesse estender para fora do meu campo de visão, para além da Praça Paris e do mar que já não vejo. Vejo-os, estendidos pelas calçadas à minha frente, estendidos como eu e estendidas as mãos que não tenho, os olhares perdidos nas passagens dos carros e nos canteiros distantes em que eu também me perco, e penso que se, como eles, pudesse andar daqui até ali, um quarteirão que fosse, ou me sumir das vistas alheias – nos parques, nas praias, na auto-demolição que fosse – vendo-me assim mais que montes de pedras e cimentos, mais que frases ecoadas – por que que frases poderá ter um mendigo? – e talvez me viesse a sensação que já não encontro nos meus pobres habitantes e nessas tardes solitárias, a sensação de ter algo que baste. E ainda assim, eles continuam imóveis na calçada, como eu, e sua desolação despreocupada de certa forma me consola.

Friday, September 15, 2006

Quando meu cimento espanta e conforta

FÁBULA DE UM ARQUITETO

A arquitetura como construir portas,
de abrir; ou como construir o aberto;
construir, não como ilhar e prender,
nem construir como fechar secretos;
construir portas abertas, em portas;
casas exclusivamente portas e teto.
O arquiteto: o que abre para o homem
(tudo se sanearia desde casas abertas)
portas por-onde, jamais portas-contra;
por onde, livres: ar luz razão certa.

2

Até que, tantos livres o amedrontando,
renegou dar a viver no claro e aberto.
Onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até refechar o homem: na capela útero,
com confortos de matriz, outra vez feto.


João Cabral de Melo Neto - A educação pela pedra