Memórias, sonhos e reflexões de um quarto de hotel

Por ambientação um sobrado de 1914 na Rua da Glória, antes casa de família, antes pensão, antes refúgio, quase ruína, hoje hotel. Por protagonista e voz o quarto 201. Por palavras suas as que já ecoaram nos seus mais de 90 anos imobilidade, e as frases que aderiram aos tijolos.

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Sunday, May 11, 2008

O menino é pai do homem

Hoje ouvi alguma conversa entre as arrumadeiras sobre ser um dia das mães ou algo do gênero. O que até certo ponto, nas condições dos meus hóspedes atuais, não deixa de ser minimamente curioso. E não me sai dos tijolos aquela certa frase que eu ouvira há tempos, “o menino é pai do homem”.

Pois são um homem e um menino. E chegaram há coisa de 3 dias no Rio, sabe-se lá até quando ficarão. Talvez não seja muito, infelizmente: se não ficarem, terá sido por causa de morte. Ninguém é pai do destino.

A morte em questão é a da mulher, a esposa do homem e mãe do menino. Doente, pelo que percebi, e gravíssima, agonizante. Chegaram os três de alguma cidade do interior que não me recorda o nome, a moça direto para o hospital, o menino direto para o hotel, o homem vagando entre ambos, sem solução à vista, na ânsia de se desdobrar.

Hoje de manhã peguei-o às lágrimas, ainda antes de se levantar, no que telefonava ao hospital, o filho na respiração leve das crianças que dormem. Não era justo terem um filho. O homem perguntava da moça aos atendentes do hospital o que podia e o que não podia, os olhos agora secos, o menino dormindo. Era cedo demais. Ou tarde, tive a impressão de tê-lo ouvido murmurar: a gente tem de descobrir as coisas antes.

Fato é que o garoto acorda e o homem sorri. O garoto se faz de soldado mas afirma não querer ir para a guerra; o homem sorri; a mulher não está lá. O homem pergunta ao garoto o que faria se o obrigassem à guerra.

- Eu fugia.

- Mas você não é soldado?

- Se eu tivesse de ir eu ia, e ia aprender a gostar, e ia a aprender a matar e a gostar de matar. Mas eu pego um navio e fujo.

- E faz o que com o navio?

- Não sei.

Calam-se ambos e é um pena a ausência da mulher, vejo nas sobrancelhas do homem, vejo nos golpes imaginários do menino com os cabides nas mãos. Seria tarde demais para pegar um táxi e acordá-la ao hospital? Haviam de fazer uma bela surpresa, quem sabe.

E no entanto era cedo. O café da manhã não começara a ser servido; o telefone tocou.

- Vamos – disse o pai – deixa de guerra. Sua mãe quer te ver.

- Eu sou um guerreiro teórico, pai.

O garoto tinha algo como quatro anos, não havia de saber que era a teoria, de que diabos a teoria poderia lhe valer. Mas acrescentou:

- Se eu tiver de matar eu mato. Mas eu não quero.

O homem chorou e o menino não viu: a questão era mesmo de morte, a gente não sabia.

- A gente tem de descobrir as coisas antes.

Saíram os dois correndo, o táxi à porta buzinando. A mulher ao fim das contas não apareceu na história, não importa. Pergunto-me se ainda estará viva a essa hora. O menino é pai do homem, eu me dizia quieto, no que pensava ser ainda o dia das mães – só o pensaria mais tarde, pelo meio da manhã, estando os dois hóspedes substituídos pelas arrumadeiras no palco que sou eu mesmo. Que servisse essa história toda de homenagem à maternidade, pensei então, ao menos aos olhos dos outros, se assim cabe tão bem. Pois é tudo o que está ao meu alcance fazer.

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