Memórias, sonhos e reflexões de um quarto de hotel

Por ambientação um sobrado de 1914 na Rua da Glória, antes casa de família, antes pensão, antes refúgio, quase ruína, hoje hotel. Por protagonista e voz o quarto 201. Por palavras suas as que já ecoaram nos seus mais de 90 anos imobilidade, e as frases que aderiram aos tijolos.

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vicsaramago@gmail.com / saramago@stanford.edu

Tuesday, January 30, 2007

A caixinha de metal

obs: Para entender melhor a história, é útil ler desde o post intitulado "As cabeças nas nuvens".

As palavras que eu já ouvi nessas tantas e tantas décadas de existência, não duvido, caberiam numa quantidade incontável de cadernos. Me admira por isso que tenham ainda algum poder de me despertar a curiosidade, de me ficar roendo de vontade de saber o que se há de desdobrar dos murmúrios aparentemente insignificantes que meus habitantes vez ou outra soltam por aí. Deve ser algo como a curiosidade dessas pessoas que lêem séries ou histórias em capítulos publicados aos poucos, em reivistinhas de banca de jornal, blogs, o que seja. A diferença é que elas podem certamente contar com a regularidade que impõe o mercado – um autor jamais teria a cara-de-pau de passar um mês inteiro sem postar nada aos seus leitores, imagino – ao passo que eu, entregue aos caprichos dos meus hóspedes e de algum destino que deva porventura existir, posso ficar para sempre sem o desenrolar das mais instigantes tramas que em mim se tenham iniciado.

Felizmente, pouco tive de esperar para saber de Rosa em seu murmurar de raciocínio, Inocência, Inocência, seria mesmo?, e eu percebia que o que lhe passava pela cabeça seria decerto muito mais interessante do que eu conseguiria supor, e nenhum dos cupins que regularmente me roem os armários seria tão eficiente quanto a curiosidade que agora me roia. Porque eu sempre senti em Rosa um certo cheiro de trambique, aquele ar dissimulado de quem vai a qualquer momento dar o golpe e se mandar pra Europa. Eu bem pressentia. E quando a vi, ao longo dos dias seguintes, vir me limpar com uma frequência muito além do habitual – certamente combinara com Andréia de assumir toda a minha limpeza, e o sangue que há pouco me cobrira devia ter sido um argumento eficaz o suficiente para convencê-la – vendo-a assim todas as manhãs, a me faxinar com seus assovios e a energia que beirava a violência, tive então a certeza de que a coisa não pararia por ali. E tive também medo de não presenciar seu desfecho, o que significaria, para efeitos práticos, não conhecê-lo.

Porque a minúcia com que Rosa me faxinava não era normal. Cada canto, cada detalhe, nos vãos da janela, atrás dos armários, na descarga da privada, em tudo ela metia um olhar de lince que só me alimentava a certeza: ela procurava. O que era eu não sabia bem, mas tinha um palpite tão certeiro que, quando a peguei afinal descobrindo entre os tacos soltos a carta e a caixinha de metal que Inocência escondera pouco antes de morrer, a vontade que me deu foi a de ter uma boca que gritasse Bingo!

Ninguém viu como eu a iluminação que lhe deu no rosto ao perceber que um dos tacos não estava preso ao chão, e o jeito calmo porém firme com que se agachou, removendo o pedaço de madeira já como quem não se contém, a caixinha ali instalada, facilmente identificável a quem tivesse uma tal idéia de arrancar os tacos do chão, um meio sorriso de quem ainda não acredita na própria descoberta. Abriu furtivamente a caixinha e afinal eu tive ciência de que, durante todo aquele tempo, estivera ocultando em minhas entranhas uma meia dúzia de diamantes que, se não for a minha imaginação falando mais alto, valeriam uma fortuna considerável. Os olhos de Rosa brilhavam, como os meus, se existissem, e toda ela tremia dos pés à cabeça, dando-me a impressão de chegar a ouvir o tilintar dos diamantes no metal da caixinha. Fechou-a e a enfiou no bolso junto com a carta, rápido a ponto de Andréia, que aparecia na porta para lhe dizer qualquer bobagem, nada perceber.

O que possa significar tudo isso, é coisa que me falta saber. O que posso dizer – e que me intriga acima de qualquer coisa – é o fato de que hoje pela manhã Rosa retornou, como sempre, e, vendo-se sozinha, removeu novamente o taco, olhou mais uma vez para o corredor a ver se não havia ninguém, e inseriu a caixinha igualmente cheia no seu lugar original. Da carta não tive notícias. Já a caixinha, em seu peso ínfimo, me incomoda como uma pedra no sapato.