Memórias, sonhos e reflexões de um quarto de hotel

Por ambientação um sobrado de 1914 na Rua da Glória, antes casa de família, antes pensão, antes refúgio, quase ruína, hoje hotel. Por protagonista e voz o quarto 201. Por palavras suas as que já ecoaram nos seus mais de 90 anos imobilidade, e as frases que aderiram aos tijolos.

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vicsaramago@gmail.com / saramago@stanford.edu

Sunday, December 24, 2006

A volta de Rosa

obs: Para entender melhor a história, é útil ler desde o post intitulado "As cabeças nas nuvens".

Há coisa de cinco anos sou faxinado por Rosa. É uma garota de uns vinte e poucos anos, ou vinte e tantos, não mais, que me esfrega o chão e as vidraças como nunca o fizeram em todas essas décadas. Uma personalidade violenta, sem dúvida. Que despeje em mim suas mágoas e revoltas, eu francamente não me importo: os tijolos nunca sentem.

Rosa andou de férias pelo último mês. Ou ao menos assim o acredito, porque simplesmente desapareceu, e já faz tempo aprendi que quando os empregados somem e aparecem sem aparente causa maior, é certo que saíram de férias. Assim ocorreu com Rosa, que voltou inclusive com todas as marcas das férias. Bronzeada, sorridente, aquela cara de fotossíntese e carnaval. E o verão mal começou.

Pois Rosa saiu direto das praias ensolaradas para cair no sangue que me restava limpar de Inocência. Não me parece, de fato, a mais agradável das voltas ao trabalho, mas nem todos têm sorte na vida, e eu já não agüentava mais as manchas vermelhas que me marcavam o tapete e as bordas da cama. Porque Andréia não sabe o que é remover sangue, nos seus tremeliques e desmaios e gritinhos. Uma fresca. Já Rosa chegou com o gosto do desafio, empunhando o balde e os panos como se desembainhasse uma espada, Andréia à porta, observando tímida, posso te ajudar, Rosa, tem alguma coisa que eu possa fazer pra te ajudar? Rosa ria porque sabia que Andréia era de todo incapaz para a seriedade do trabalho, e comentava entre um cantarolar e outro:

- Eu vou é embora daqui, Andréia, eu vou é cair fora.

Andréia perguntava para onde como quem pergunta ainda se pode ajudar.

- Eu vou é pra Europa, Andréia, pro frio, pra onde a vida seja mais fácil. Eu preciso é bem disso, é de arrumar um gringo rico que me tire dessa desgraceira desse país.

E sendo tão descombinados esses seus comentários em meio ao bronze das praias paradisíacas que ela devia ter visitado, Andréia apenas a ignorava, inclusive porque não pudera ainda esquecer o problema do sangue:

- Rosa, você não imagina o que foi encontrar essa moça morta, você não imagina!

- É, Andréia, não é fácil não. Por isso que eu quero é sair daqui.

- Era uma garota tão tranqüila, ficava o dia todo trancada no quarto, mas saía direitinho na hora que eu tinha de limpar, era um amor de pessoa.

- É o que te digo: esse país não dá mais não.

Só Rosa pra me remover tão rápido as manchas, a minha eficiente faxineira. Percebi pela primeira vez estar com saudades dela.

- Sério, Rosa, foi de longe a pior coisa que eu vi na vida. Não vou esquecer nunca, nunca...

- Claro que vai. Vai é esquecer tudo.

- E você sabe o nome dela? Heim, você sabe?

Rosa entrava agora na última etapa do trabalho, eu aliviado como se me tivessem retirado o peso da consciência.

- Inocência.

O assobio de Rosa parou de súbito, as mãos de Rosa paradas, o pano de chão pendendo de seus dedos e o sangue aos pingos.

- Inocência?

- Isso. Inocência. Engraçado, não? Uma suicida chamada Inocência.

Por um minuto ainda peguei a faxineira perdida nos cálculos, nas indagações. Era bem verdade que Rosa saíra de férias uma semana antes da vinda de Inocência, as duas não haviam chegado a se esbarrar.

- O que houve, Rosa? – Andréia não tinha sutilezas. Rosa acordou de repente dos devaneios, viu o sangue que me voltava ao sinteco, e recomeçou o trabalho.

- Não, nada não. É engraçado, mesmo, muito engraçado. Mas o melhor é achar um gringo que leve a gente pra Alemanha, Andréia, ouve o que eu te digo.

Mas Andréia já havia partido, chamada por algum hóspede. E Rosa, o trabalho quase terminado, prosseguia nos murmúrios: Inocência, Inocência, seria mesmo...?

Tuesday, December 12, 2006

Andréia descobre o corpo

obs: Para entender melhor a história, é útil ler desde o post intitulado "As cabeças nas nuvens".


É difícil a noite com um cadáver dentro de nós. É difícil carregar a morte assim, como essência nossa. Nunca tive em mim uma morta, como Inocência, e menos ainda por uma noite inteira. Nunca vi mortos, nunca fui por eles habitado. (E aqui cabe repisar do meu grande sonho, o de ter um fantasma que preencha, que me atenue a solidão. Durante anos acreditei que pudesse ser Júlia, que pudesse ela voltar, depois de tantos anos no exterior, e décadas após a sua morte, o que quer que tenha sobrado dela fosse afinal se lembrar desse velho quarto que a acolheu, que a foi durante o que acredito ter sido o único período verdadeiramente feliz da sua vida. Que Inocência venha a me suprir essa falta de um fantasma: me faria bem.)
Mas a noite passou e não quero falar dela. Lembro-me dum livro que em mim leram há anos atrás, um inseto gigante com uma maçã apodrecida encravada entre suas asas, como ferida. Seja Inocência essa minha maçã de hoje à noite, e aí está tudo o que por ora direi sobre ela.
Conto desta manhã, de Andréia que me veio fazer a limpeza de todos os dias. Chegou pontualmente às dez, bateu na porta, e nada. Passou-se um tempo, voltou a bater. Nada. Andréia sabe que não é de bom tom insistir nesses casos: a hóspede pode querer dormir até mais tarde. Assim foi que até meio-dia Andréia aguardou, até não haver mais jeito. Forçou a maçaneta, a porta se abriu sem problemas. Só uma suicida para ter o cuidado de deixá-la destrancada. E das suas sobrancelhas contorcidas, o rosto tão pálido de quase sem lábios, dos gritos de pavor, o pano que levava à mão caído sobre o seu sapato e os braços petrificados apoiando-se na cômoda ao lado da porta, não, de nada disso tenho vontade de contar. Fique a cena na memória de cada um de vocês, breve e cortante como deveria ser. E fique também o que se seguiu, de como aos seus gritos logo uma meia dúzia de hóspedes e empregados a mim acorria, os rostos se multiplicando à minha entrada e ninguém entretanto com coragem a me adentrar e me livrar da Inocência maçã, até que a mim seu Castro, o dono, arrastando-se pelas escadas e os corredores, empurrando a todos os que se acumulavam como se espantasse cachorros, até o pé de minha cama, seus olhinhos mais arregalados do que jamais vira eu em 20 anos de convivência.
- Andréia, chama a polícia nesse minuto, murmurava ele. Neste minuto, Andréia, vai!
Mais uns cerca de 40 minutos e os policiais me ocupavam, incomodando-me com suas revistas a cada um de meus centímetros, examinando Inocência, tomando notas, a posição do corpo, a posição da arma. Seu Castro ao lado do delegado acompanhava tudo atentamente, a portas fechadas. Eu sabia que ele não confiava muito em policiais, e sentia nos próprios tijolos o quanto lhe devia ser penoso aquele episódio, o quanto se esforçava por ser simpático e, na medida do possível, acreditar que colaborava.
- Era uma boa moça, delegado, uma ótima moça. Passou mais de três semanas aqui, nesse quarto, antes de cometer esse desatino. Esses jovens são mesmo surpreendentes, não? Imagine o senhor: não saía, não bebia, não trazia gente aqui pra dentro, não fazia nada. Um anjo. E ainda pagava adiantado!
- Isso não diz nada, sussurrou o delegado, por entre os goles de café, a voz empastada pelo tédio. – Eles sempre pagam adiantado.

Monday, December 04, 2006

Inocência

Estive enganado, mortalmente enganado: minha habitante que espera retornou. E como desejaria eu agora um dedinho de metafísica que me esclarecesse se os que como ela neste momento estão esperam, se esse estado dela de agora é ainda uma espera.

Porque Inocência, como viria a saber que se chamava, Inocência esta manhã abriu a porta do meu quarto. Eram 11 horas. Andréia fizera há pouco a faxina, e eu sentia – como quem acaba de sair do banho – um frescor de vento que me assustava as cortinas misturado ao eucalipto dos produtos de limpeza que me haviam esfregado. Estava acomodado na solidão das 11 da manhã, na sua perspectiva: ninguém chega neste horário. As diárias começam a contar a partir de meio-dia, seria um tanto quanto estúpido pagar um dia a mais pela uma hora que durará a espera – ainda ela. Mas Inocência não se incomodou de pagar. Tinha seus motivos.

Abriu a porta devagar. Eu esperava alguém como Andréia, que viesse checar se esquecera alguma coisa, e eis minha habitante da espera; a que não mais espera. Penetrou silenciosa nas minhas paredes. Chegou-se a um canto e se pôs a pisar nos tacos do chão, como apalpando-os, como que testando. Contou o terceiro a partir da parede que abria para o banheiro, na fileira encostada à parede perpendicular. De fato estava meio solto aquele taco, e fiquei ponderando se ela já sabia disso antes.

Inocência agachou-se. Arrancou o taco com cuidado, que cedeu dócil às suas mãos. Meus pedaços são sempre fáceis, estão sempre à disposição de quem os queira subtrair: é o que o tempo faz conosco. Inocência sabia disso. Assim como sabia haver um vão entre o lugar que ocupava o taco e o cimento, um vão suficientemente grande para que a moça nele depositasse um envelope preto com algum papel dentro – eu me perguntava que louco seria atento bastante para repará-lo – e, sobre o envelope, uma pequena caixa de metal, chata e retangular. Ainda tive tempo de lhe ver a imagem gravada no tampo, as chinesas com seus guarda-chuvas à frente do mar, antes que as tapasse Inocência, recolocando cuidadosamente meu taco no lugar de sempre, eu tentando me acostumar ao frio do metal da caixa, uma vez que meu cimento nunca reuniria calor que a aquecesse.

Inocência então se sentou sobre a cama. Suas mãos tremiam. Olhou mais uma vez para a janela e acreditei que esperaria, como de praxe. Percebi, entretanto, e não sem certo pesar, que não era a isso que viera novamente a mim. Inocência estava cansada de esperar, cansada a ponto de, ao puxar a si a enorme bolsa de pano que carregava, de tirar de dentro dela um revólver pequeno como eu nunca vira – por mais que não tenha visto muitos revólveres por estas décadas – e, antes que eu me desse conta do que de fato ocorria, com ele estourou os miolos.

Agora está aqui com seu corpo, caída na cama, a mancha vermelha e o que acredito serem os caquinhos de cérebro pelos colchões e o tapete, os respingos de sangue escorrendo pela minha parede. E eu à espera, ironicamente, à espera de quem me venha remover este corpo repulsivo e me restitua o frescor das 11 da manhã, a minha essência de eucalipto.

Se deveria me comover com tudo isso? Ora, eu sou só palco.