Inocência
Estive enganado, mortalmente enganado: minha habitante que espera retornou. E como desejaria eu agora um dedinho de metafísica que me esclarecesse se os que como ela neste momento estão esperam, se esse estado dela de agora é ainda uma espera.
Porque Inocência, como viria a saber que se chamava, Inocência esta manhã abriu a porta do meu quarto. Eram 11 horas. Andréia fizera há pouco a faxina, e eu sentia – como quem acaba de sair do banho – um frescor de vento que me assustava as cortinas misturado ao eucalipto dos produtos de limpeza que me haviam esfregado. Estava acomodado na solidão das 11 da manhã, na sua perspectiva: ninguém chega neste horário. As diárias começam a contar a partir de meio-dia, seria um tanto quanto estúpido pagar um dia a mais pela uma hora que durará a espera – ainda ela. Mas Inocência não se incomodou de pagar. Tinha seus motivos.
Abriu a porta devagar. Eu esperava alguém como Andréia, que viesse checar se esquecera alguma coisa, e eis minha habitante da espera; a que não mais espera. Penetrou silenciosa nas minhas paredes. Chegou-se a um canto e se pôs a pisar nos tacos do chão, como apalpando-os, como que testando. Contou o terceiro a partir da parede que abria para o banheiro, na fileira encostada à parede perpendicular. De fato estava meio solto aquele taco, e fiquei ponderando se ela já sabia disso antes.
Inocência agachou-se. Arrancou o taco com cuidado, que cedeu dócil às suas mãos. Meus pedaços são sempre fáceis, estão sempre à disposição de quem os queira subtrair: é o que o tempo faz conosco. Inocência sabia disso. Assim como sabia haver um vão entre o lugar que ocupava o taco e o cimento, um vão suficientemente grande para que a moça nele depositasse um envelope preto com algum papel dentro – eu me perguntava que louco seria atento bastante para repará-lo – e, sobre o envelope, uma pequena caixa de metal, chata e retangular. Ainda tive tempo de lhe ver a imagem gravada no tampo, as chinesas com seus guarda-chuvas à frente do mar, antes que as tapasse Inocência, recolocando cuidadosamente meu taco no lugar de sempre, eu tentando me acostumar ao frio do metal da caixa, uma vez que meu cimento nunca reuniria calor que a aquecesse.
Inocência então se sentou sobre a cama. Suas mãos tremiam. Olhou mais uma vez para a janela e acreditei que esperaria, como de praxe. Percebi, entretanto, e não sem certo pesar, que não era a isso que viera novamente a mim. Inocência estava cansada de esperar, cansada a ponto de, ao puxar a si a enorme bolsa de pano que carregava, de tirar de dentro dela um revólver pequeno como eu nunca vira – por mais que não tenha visto muitos revólveres por estas décadas – e, antes que eu me desse conta do que de fato ocorria, com ele estourou os miolos.
Agora está aqui com seu corpo, caída na cama, a mancha vermelha e o que acredito serem os caquinhos de cérebro pelos colchões e o tapete, os respingos de sangue escorrendo pela minha parede. E eu à espera, ironicamente, à espera de quem me venha remover este corpo repulsivo e me restitua o frescor das 11 da manhã, a minha essência de eucalipto.
Se deveria me comover com tudo isso? Ora, eu sou só palco.
2 Comments:
Putz, interessante mesmo. A arma já estava aí, o tempo todo, não? E sem que você soubesse? Preciso pensar no assunto.
Vou tentar te linkar assim que descobrir como mexer sozinho na máquina dos blogs. Beijo!
estar acomodado na solidão... gostei disso... tenho tantos tacos soltos, mas deles só saem insetos...
beijo.
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