Memórias, sonhos e reflexões de um quarto de hotel

Por ambientação um sobrado de 1914 na Rua da Glória, antes casa de família, antes pensão, antes refúgio, quase ruína, hoje hotel. Por protagonista e voz o quarto 201. Por palavras suas as que já ecoaram nos seus mais de 90 anos imobilidade, e as frases que aderiram aos tijolos.

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vicsaramago@gmail.com / saramago@stanford.edu

Wednesday, November 01, 2006

As cabeças nas nuvens

Tenho em mim há já não poucos dias um ser que nunca está onde gostaria, ou onde conviria. Entendem o que digo? Entendem essas pessoas que parecem sempre estar com a cabeça nalgum canto distante do universo, ou mesmo numa cidade próxima, remoendo algum passado que nunca tivesse existido e ainda assim presentes no presente que eu, como espaço que sou, realizo continuamente?

E essa pessoa que me hoje habita é tão desconfortável na medida em que não me deseja de fato habitar, que não mais me aceita por espaço no qual, infeliz ou inevitavelmente, ela se encontra. Vejo-a de instante a instante com os olhos presos no nada, nas janelas, cismando as suas fantasias como se fossem elas de fato possíveis, e quando essa determinada pessoa se dá conta do que há à sua volta, os raios de sol pelas paredes e a cama desfeita, ou seja, isto tudo que sou eu, percebo que ela, ao me perceber, sofre. Isso me enerva talvez mais do que eu gostaria de admitir. Primeiro porque esta pessoa me despertou uma simpatia oculta que torna a mim tudo desagradável como o é a ela – como se eu pudesse me desagradar por estar em mim mesmo. Em segundo lugar, porque nada há de mais desconcertante do que ser habitado por um corpo que não me habita de fato. Como uma alma que se nega a assumir a própria carne – se coubesse uma tal comparação –, ou como uma frase que não assume as próprias palavras – e aí me soa melhor a metáfora, mais assumível, ao menos.

Mas a pessoa que hoje trago comigo me rejeita e, decidida que está a não me ter por espaço que a circunda, sinto-me quase um não-espaço, um espaço sem validade. Me dá então uma vontade enfurecida de não ser mais o espaço que ela ocupa, mas os sonhos que ela traga. E colocamo-nos os dois a cismar com as nossas impossibilidades, como se aí, em pedaços de sonhos e devaneios que jamais se materializarão, pudéssemos enfim encontrar uma unidade. Não a dos átomos, naturalmente; a das assombrações.

4 Comments:

Anonymous Anonymous said...

temos a metáfora para que o silêncio não nos sufoque... evita também que as palavras nos afoguem.

beijo
saulo.

11/03/2006 10:48 AM  
Blogger Sun said...

amei o texto. Muito profundo... às vezes é difícil nos aceitarmos.

11/15/2006 4:55 PM  
Blogger Machado de Carlos said...

Profundo. Às vezes precisamos da solidão. Um espaço só nosso, entretanto tudo tem o seu tempo.

11/18/2006 6:38 PM  
Anonymous Anonymous said...

Lindo esse texto...criação de identidade e alteridade...como esquizofrenia e simbiose..beijos...

6/14/2007 12:24 PM  

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