Memórias, sonhos e reflexões de um quarto de hotel

Por ambientação um sobrado de 1914 na Rua da Glória, antes casa de família, antes pensão, antes refúgio, quase ruína, hoje hotel. Por protagonista e voz o quarto 201. Por palavras suas as que já ecoaram nos seus mais de 90 anos imobilidade, e as frases que aderiram aos tijolos.

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vicsaramago@gmail.com / saramago@stanford.edu

Saturday, September 23, 2006

À tarde

É alguma coisa com a tarde, talvez, ou com a vida, a pedra, o que seja, que eu não sei ainda exprimir – que não me tenham ecoado as frases suficientes a que o diga –, mas falta alguma coisa tão coisa nessa minha tarde que já quase não dá vontade de ter gente entrando e saindo, que já quase não dá vontade de ser gente – se um pouco gente eu puder me considerar, pelas décadas de convívio ao menos. Como se eu já não soubesse sequer ser quarto de hotel, não podendo mais suportar os outros que me vêm e me vão e me são, submisso à presença alheia como um pobre monte de pedras que sou, como um mendigo que, à falta de uma casa – do seu monte de pedras – não tivesse meios de se colocar fora das vistas dos transeuntes.
Eu não sei o que é um mendigo, eu nunca fui um mendigo, nesse sentido de me ter algum deles adentrado. Os mendigos, exilados que estão desses cômodos das classes médias – como mais freqüentemente me classificam –, mas ouço deles, seus suspiros e pedidos, e sinto-os tão próximos como um meu olho que se pudesse estender para fora do meu campo de visão, para além da Praça Paris e do mar que já não vejo. Vejo-os, estendidos pelas calçadas à minha frente, estendidos como eu e estendidas as mãos que não tenho, os olhares perdidos nas passagens dos carros e nos canteiros distantes em que eu também me perco, e penso que se, como eles, pudesse andar daqui até ali, um quarteirão que fosse, ou me sumir das vistas alheias – nos parques, nas praias, na auto-demolição que fosse – vendo-me assim mais que montes de pedras e cimentos, mais que frases ecoadas – por que que frases poderá ter um mendigo? – e talvez me viesse a sensação que já não encontro nos meus pobres habitantes e nessas tardes solitárias, a sensação de ter algo que baste. E ainda assim, eles continuam imóveis na calçada, como eu, e sua desolação despreocupada de certa forma me consola.

2 Comments:

Anonymous Anonymous said...

feliz em conhecer seu espaço.

um beijo;

eduardo l.

9/24/2006 2:03 PM  
Blogger Sun said...

muito bonito seu texto!!

9/27/2006 6:23 PM  

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