Memórias, sonhos e reflexões de um quarto de hotel

Por ambientação um sobrado de 1914 na Rua da Glória, antes casa de família, antes pensão, antes refúgio, quase ruína, hoje hotel. Por protagonista e voz o quarto 201. Por palavras suas as que já ecoaram nos seus mais de 90 anos imobilidade, e as frases que aderiram aos tijolos.

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vicsaramago@gmail.com / saramago@stanford.edu

Tuesday, July 18, 2006

Manhã chuvosa

Acredito que choveu hoje de manhãzinha. Ninguém tinha ainda aberto as minhas janelas para me liberar a visão, mas o frio que me tomou as paredes dava uma certa impressão de umidade, quem sabe uma névoa de início de manhã.

Lembra um pouco os meus tempos de quarto de família, a Júlia criança me abrindo a janelas bem cedinho, antes de ir para a escola, os postes da Praça Paris ainda acesos no azulado do fim da madrugada, o café fumegando na xícara que ela costumava trazer aqui para cima. Porque, estando sempre atrasada, era comum a Júlia se vestir ao mesmo tempo em que acabava de tomar o café e revisava os deveres de casa. Acendia as minhas lâmpadas, então, e eu me sentia um único e pequeno ponto de luz num universo longínquo. O mar se estendia à minha frente, eu me querendo ainda mais recolhido do que pode ser um cômodo pela própria natureza, aconchegante e íntegro como um grande envoltório, um cobertor. Seguia então os movimentos de Júlia um a um, a pressa de se vestir e os olhos cheios de remela. Assistia-a no meu desejo desesperado de poder ajudá-la de alguma forma, de ter braços que lhe vestissem a camisa ou bocas que lhe soprassem as respostas dos deveres. Ela era tão avoada.

Mas a aflição não chegava a durar: eu sentia – e nisso me via afinal ao menos um pouco útil – que a Júlia precisava de mim para pôr um ponto final nos deveres e no sono, como se só as minhas luzes acesas no frio da manhã para sinalizar que o dia de fato começara, o frio das paredes e o cheiro do café animando os seus sentidos. Bons tempos.

Porque acho que uma das grandes infelicidades de ser hoje um quarto de hotel é essa incapacidade dos hóspedes de acordar cedo, de perceber a manhã como Júlia a percebia quando, em meio ao atabalhoamento da pressa, se voltava para a janela aberta e percebia, como eu, que o início da manhã carregava um algo mais de mágico que nenhum de nós podia definir bem, essa névoa azulada, talvez, e que essa percepção era necessária a que o dia fosse mais espesso, a que o dia se estendesse para um nível além das suas aulas e das minhas horas solitárias. Mas não. Esses meus hóspedes, quando por acaso acordam cedo, vestem-se rapidamente, na penumbra, as janelas fechadas e no máximo um abajur aceso. Nem me lembro mais a última vez em que um miserável qualquer se dignou a abrir um pouco que fosse a janela e me deixou apreender a manhã. Parece que não pensam nisso, que não faz diferença. Ou eu que não sei mais ser o quarto de alguém. Tanto faz. Só sei que minhas paredes estão úmidas, e é só por isso que acredito que chove.

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

já acertei o nome no meu blog. sigo esperando a continuação da história aqui.
beijo.

7/24/2006 8:20 AM  

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