Memórias, sonhos e reflexões de um quarto de hotel

Por ambientação um sobrado de 1914 na Rua da Glória, antes casa de família, antes pensão, antes refúgio, quase ruína, hoje hotel. Por protagonista e voz o quarto 201. Por palavras suas as que já ecoaram nos seus mais de 90 anos imobilidade, e as frases que aderiram aos tijolos.

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Wednesday, August 30, 2006

Plutão e eu

Foi com certa nostalgia que hoje andei ouvindo pelos corredores que Plutão não é mais um planeta. Não que me interessem especialmente os temas astronômicos. Nunca saí sequer no canto que ocupo nesta casa, e é mais fácil a rua da Glória mudar de lugar do que eu me locomover um centímetro que seja. A distância a que me encontro do mar já é grande demais depois do aterro do Flamengo, que dirá de Plutão.

Acontece que tenho um carinho não confessado por Plutão. Lembro-me bem, o início dos anos 30, quando o ex-planeta foi descoberto. Eu era um jovem quarto, cerca de 16 anos na cara, a Júlia minha habitante conversando a mãe, e Natália anunciando: que há mais um planeta no céu, minha filha, não é incrível?, e é tão longe e tão gelado e a gente não sabe nada dele, mas não continua tão incrível? E eu conhecia Júlia a ponto de saber o que para ela isso poderia significar, ou seja, praticamente nada, e me ria abafado das preocupações de Natália, a educação de Júlia, porque a minha filha tem que ser bem informada, porque não basta saber bordar e tocar piano, porque tem que saber que Plutão existe e é um planeta.

Hoje continuo achando graça, talvez de uma forma ou de outra seja só o que me resta a fazer. Porque as pessoas levam tanto em conta as suas pobres definições humanas que chegam a ter pena de Plutão por não ser ele mais um planeta. Porque falam em dar um prêmio de consolação ao pobre Plutão rebaixado à categoria de planeta-anão. O mais importante dos planetas-anões, que lindo. Como se Plutão fosse se magoar. Como se ficasse ressentido porque num canto desconhecido do universo um punhado de seres estranhos o classificam não como um algo desconhecido, mas como um algo-anão desconhecido. Como se tudo isso fizesse alguma mísera diferença na existência de Plutão.

Que dêem prêmios de consolação aos astrólogos agora, eles precisam mais. Coitados, a confusão em que se meteram: Plutão rege ou não escorpião? E os novos planetas-anões, regem quem? Ou não seria mais simples colocar os outros planetas que sobraram para brincar de revezamento no lugar de Plutão? Como se não fosse tão explícita a impotência do homem perante a grandeza do universo, como se bastasse uma meia dúzia de cálculos e fantasias a modificar os astros e os destinos. A astrologia... taí outra das coisas engraçadas dos humanos. Chega a parecer que faz diferença no destino de alguém Plutão ser ou não um planeta. Parece até que Plutão não é mais que um quarto de hotel.

Porque o pior é ter de reconhecer, ao contrário dos planetas, que me faz tanta diferença qualquer coisa que as pessoas queiram fazer de mim. Que me peguem para quarto de família, de hotel, depósito ou sala de estar, que simpatizem comigo e tenham desejos de me habitar: qualquer capricho humano me afeta tão radicalmente que chega a dar agonia o barulho dos passos se aproximando no corredor, a expectativa das reviravoltas que podem me acontecer sem nenhum aviso prévio. É que os seres humanos acreditam tão fortemente controlar todo o universo quanto de fato me controlam.

E o que me poderá restar de sentimento desse universo então, senão uma pontada de inveja?

2 Comments:

Blogger Victoria Saramago said...

testando...

9/06/2006 10:30 AM  
Anonymous Anonymous said...

waiting for more...
:)

9/14/2006 7:18 AM  

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