Os quadros da minha vida (I)
Um quadro é talvez como um parente, ao menos pelo que pude até hoje perceber de parentescos. Chegam e me colocam um prego na parede, sem que eu nada possa fazer, penduram-me um quadro que não pedi, sem perguntar a minha opinião ou considerar qualquer gosto estético que eu pudesse porventura desenvolver, e está feito: que eu conviva anos e anos, décadas a fio com essa placa da madeira nas costas, por assim dizer, retangular como eu, como eu rígida na sua imobilidade, e, no mais, completamente estranha à minha história – a despeito da história que venhamos a construir juntos. Chega a ser engraçado.
No fundo, tudo depende do gosto do meu proprietário no momento, e até certo ponto da sorte de lhe aparecerem bons quadros a preços razoáveis, ou os que por algum motivo lhe caiam nas mãos – presentes, pagamentos de dívidas, já vi muito disso. E depende ainda desse meu proprietário ter o bom senso de saber o que combina comigo, de atentar para as minhas cores e perceber num nível mínimo as nuances de colorido e iluminação que me são tão óbvias.
É verdade que, mesmo assim, já desenvolvi laços saudáveis e duradouros com algumas gravuras da cerca de uma dúzia que já sustentei. Em geral não há muito o que fazer: ninguém troca os quadros da sua casa com tanta freqüência, de modo que vale mais a pena estabelecer alguma relação amigável com um quadro do que odiá-lo por um tempo absolutamente indeterminado e, portanto, eterno.
Aliás, relação talvez seja um termo forte demais. Não chego a me relacionar com ninguém, não tenho a menor condição – e nem sequer a intenção – de responder voluntariamente ao que quer que seja. Só ecôo o que reverbera em mim, algo certamente não muito mais complexo do que faz um papagaio. Como tudo e todos na vida, ao que me parece.
Desse jeito, ficamos ambos unidos, eu o quadro, o contato permanente, ele pesando sobre mim e eu agüentando, o mofo e o limo que compartilhamos, eventualmente uma teiazinha de aranha e uma vez até mesmo uma toca de marimbondos, com um pequeno retrato de Natália que ficou esquecido num canto quando permaneci toda a década de 50 semi-abandonado. As gotas de chuva que a janela não detenha, a mesma poeira e o calor no verão. Dois retângulos abobalhados que somos, juntos porque não haveria outro jeito, porque um terceiro assim decidiu, colados por um prego que só faz enferrujar e nos corroer a ambos com o tempo e a umidade. E continuamos alheios um ao outro, sem palavras ou respostas, cada qual com seus átomos e suas tintas baratas, imersos em suas próprias concretudes, sem contato maior que reverberações que nada dizem. É uma relação interessante.
Digo isso porque outro dia me vi privado de um dos mais caros desses meus companheiros de tédio e intempéries. Coitado, caiu no meu chão com um estrondo terrível esta manhã. O prego que o sustentava não resistiu.
Mas sobre ele continuo no próximo post.
4 Comments:
Achei muito bom. Lembra algo da Adriana Lisboa!
Você vai ficar famosa menina!
Beijos
Já li algumas coisas dela, achei bem interessante...
Escrever não é copiar os autores que gosta não. Falta muito nesse texto.
De cópia até diálogo, suplemento, reescritura, pastiche, paródia... taí uma distância interessante de se pensar.
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