Memórias, sonhos e reflexões de um quarto de hotel

Por ambientação um sobrado de 1914 na Rua da Glória, antes casa de família, antes pensão, antes refúgio, quase ruína, hoje hotel. Por protagonista e voz o quarto 201. Por palavras suas as que já ecoaram nos seus mais de 90 anos imobilidade, e as frases que aderiram aos tijolos.

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vicsaramago@gmail.com / saramago@stanford.edu

Wednesday, August 02, 2006

Aguardando o retorno de Kurtz (I)

Dezembro já está pela terceira semana, e falta Kurtz. Meu hóspede mais fiel: cinco verões juntos, metade de dezembro e metade de janeiro, ele sempre o mesmo e sempre em mim. Como tempos circulares, que vêm e vão: Kurtz sempre vem. À exceção do ano passado, em que simplesmente não apareceu. Às vezes me pergunto o que terá acontecido. Se desistiu do Brasil, do Rio, deste hotel, de mim. Verdade que seria muito esperar que sempre viesse para cá, que tivesse este cuidado. Por baixo do seu jeito taciturno é uma pessoa rude, e eu não poderia de qualquer forma supor que tivesse esse senso nostálgico que leva alguns a procurarem os mesmos quartos, a pensarem nos quartos como algo mais que um teto e uma cama, como algo em que se deva pensar. Kurtz nunca me pareceu ser desses espíritos, e não tenho justificativas melhores do que o acaso para ter me habitado tantas vezes seguidas.
Da vida de Kurtz mesmo, para fora de mim e do Brasil, sei pouco. Ainda assim mais do que a maioria dos meus habitantes, os consumidores do meu oxigênio, os que passam pelas minhas paredes por não mais que alguns dias ou mesmo horas, infiéis, inconscientes do esforço que dispendo dedicando-me a sê-los por completo, a lhes guardar as vergonhas e os segredos. Porque é muito difícil apreender toda a consistência de uma pessoa quando ela permanece tão pouco, quando ela me deixa tão pouco dos seus átomos e memórias. E mais complicado em se tratando de tantas pessoas, tantos passantes indo e vindo. Algo como, digamos, uma promiscuidade de essência, é do que hoje sofro, o mal de todos os quartos de hotéis.
Mas de Kurtz sei que é norueguês, que pesca bacalhau nas costas da Noruega – sim, não riam: meu mais caro habitante hoje em dia é um pescador de bacalhau – e que aparentemente tem ou já teve uma mulher por lá. Ao menos foi o que concluí pelos poucos indícios que me dá, pela foto que eventualmente tira da carteira – sempre a mesma, ao longo de tantos anos – e observa atento como só um pescador de bacalhau norueguês poderia fazer, sem demonstrar saudade, luto ou amor, os olhos congelados nas formas de uma mulher tão loira que dá a impressão de não ter sobrancelhas, sentada numa cadeira de ferro, um jardim ao fundo, coberta por uma manta xadrez, um sorriso quase defunto de tão sereno. Que seja esposa, amante, mãe, irmã, pouco me importa. Só torço para não ser a voz esganiçada que lhe telefona da Noruega, que lhe grita ao telefone profusões de exclamações nessa língua peculiar que é o norueguês, megera como nunca poderia ser uma mulher como a da fotografia, em seu sorriso sereno, sorrindo no lugar das sobrancelhas invisíveis. Essa mulher que liga de três em três dias quando Kurtz vem para cá, infernal, quase me dá vontade de desmoronar sobre o telefone, que deixe Kurtz em paz, que pare de amolar o meu hóspede preferido, que não desmanche esse seu jeito ciscunspecto, o seu jeito de cômodo. Porque nunca alguém se pareceu comigo tanto quanto Kurtz na sua imobilidade de concreto. Kurtz imóvel como um cômodo, nós dois num estado próximo a irmãos gêmeos, simbióticos, a foto e o sorriso da mulher enrolada na manta xadrez nos habitando o coração e as paredes, e não fosse essa a mesma do telefone, e talvez ele não acredite que seja – eu não acredito. Eu rio dela e do desconcerto de Kurtz, rio porque acredito em tudo o que não deveria: que ele realmente me escolhe por afinidade, que escolheu por amor essa moça do retrato.
Sinto falta de Kurtz.

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

tou acompanhando! :O) publica mais!
coitado do gordinho e da secretária! vai ver eles gostaram!

8/10/2006 10:21 AM  

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